Declarações não são bravatas
“Ai, bota aqui/ Ai, bota aqui o seu pezinho/ Seu pezinho bem juntinho com o meu/ E depois não vá dizer que você se arrependeu!”
Não é novidade para ninguém que o candidato favorito ao cargo de presidente da República é pródigo em declarações ofensivas a mulheres, pessoas LGBT, negros, indígenas, pobres etc. Será que declarar essas coisas tem alguma importância?
Seus eleitores, excetuados aqui os homens brancos heterossexuais bem-sucedidos (em tese, não atingidos pelas diatribes do candidato), costumam minimizar o efeito dessas declarações, tomadas como gestos de sinceridade ou bravatas inconsequentes, mera expressão do “jeitão de machão” dele etc.
Como explicar a adesão feminina ao candidato que aceita como normal que mulheres (bonitas) sejam alvo de estupro? Ainda que não defenda o ato em si, ele o toma como resultado de um instinto normal em homens viris, cabendo, portanto, à mulher dar-se ao respeito, vestir-se adequadamente, esconder a beleza tentadora, a fim de que o homem consiga conter-se.
O que subjaz a esse discurso é que homens viris desejam estuprar, mas, é claro, devem tentar conter-se na maior parte das vezes. A solução para o problema passa, nesse tipo de raciocínio, pela contenção e, quando isso não funciona, pela punição.
Seria muito melhor pensar que os homens não são todos potenciais estupradores que têm de se conter diante de uma mulher que os atraia, que virilidade não é isso. É a mudança de mentalidade que traz o respeito à mulher, o qual implica vê-la como um ser dotado de inteligência, sujeito de suas vontades, não como mero objeto ou apêndice, a quem cabe apenas a gerência do lar de um homem.
O mesmo vale para os gays. Não é razoável dizer que preferia ver morto um filho gay ou dizer que não tem um filho gay porque deu aos seus boa educação em casa. Gays mais jovens, brancos e bem-sucedidos ou oriundos de famílias mais abastadas, porém, podem achar que as “bravatas” do candidato não têm o poder de interferir na sua vida e nas suas conquistas.
Mulheres brancas, casadas, ricas ou apenas bem-sucedidas, igualmente podem achar que nada disso é com elas, que ele é “machão”. Negros e afrodescendentes de modo geral, igualmente, se gozam de uma situação econômica boa ou razoável, também podem achar que as declarações do candidato não vão mudar a sua vida, podem até achar que não existe racismo na sociedade.
O fato é que as lutas das minorias (minorias de poder, não minorias numéricas) por reconhecimento e respeito vão dando resultado aos poucos, não de uma só vez. É por isso que, felizmente, há mulheres, LGBTs e afrodescendentes que já conseguiram galgar posições na sociedade, bem como pessoas de origem pobre que conseguiram ascender economicamente. Essas pessoas são, sim, fruto de seus esforços e de sua luta pessoal, mas também são fruto da luta coletiva que se empreende em favor delas, luta que jamais foi encampada por regimes de extrema direita.
Em suma, o ambiente de liberdade é o que permite que as pessoas desenvolvam suas potencialidades e se expressem como quiserem, respeitando umas às outras. Declarações vindas de um candidato a presidente da República não são palavras ditas ao vento ou bobagens inconsequentes ditas em reuniões privadas. Ao serem manifestadas em público, elas reivindicam legitimidade. Preconceitos que deveriam estar enterrados ganham o status de “opinião”.
Será que nós queremos uma sociedade que legitima o preconceito racial, a misoginia, a homofobia, a segregação dos mais pobres (sobre os quais recai toda a responsabilidade pelos crimes), a censura a livros e obras de arte, a solução dos problemas pela força, pondo as pessoas armadas umas contra as outras?
Nas redes sociais, muitas vezes faz sucesso quem é debochado, iconoclasta, aquele sujeito que parece comum, “igual a todo o mundo”. Talvez esse critério de valor não seja o melhor na hora de escolher o representante máximo da nação. A fanfarronice de hoje será lei amanhã. Se eleitas as forças retrógradas, acordaremos no dia seguinte sob a nuvem negra do preconceito e de todo tipo de rancor.