Uma conversa (gramatical) sobre laranjas

O termo “laranja” tem estado nas páginas da Folha nas últimas semanas em razão de uma série de reportagens que vêm descortinando um esquema, usado pelo PSL, para fazer uso fraudulento das verbas públicas do fundo partidário por meio de candidaturas de fachada.

Como não poderia deixar de ser, a palavra em si despertou a curiosidade do leitor. Os dicionários há algum tempo registram o termo na acepção de “homem tolo, ingênuo”. Houaiss atualizou esse sentido, acrescentando o traço de “indivíduo nem sempre ingênuo, cujo nome é utilizado por outro na prática de diversas formas de fraudes financeiras e comerciais, com a finalidade de escapar do fisco ou aplicar dinheiro de origem ilícita”.

Essa acepção fundamenta a expressão “candidato laranja” (ou mesmo o substantivo composto “candidato-laranja”), ainda que a criatividade dos políticos quando o assunto é fraude esteja a pedir novas atualizações lexicográficas. Do ponto de vista morfológico, vale notar que o segundo elemento (“laranja”) é um substantivo que atua como determinante específico, exatamente como “fantasma” em “conta fantasma” (ou “conta-fantasma”).

“Laranja”, nesse caso, não diz respeito à cor e talvez nem mesmo à fruta. Exatamente por não se tratar de cor, não se sujeita à concordância dos substantivos que nomeiam cores, os quais permanecem invariáveis.

Quem não se lembra das bicicletas laranja  do projeto Bike Sampa? Muito bem. Quando se refere à cor (cor de laranja), de fato, o substantivo “laranja”, usado como adjetivo, permanece invariável. Bicicletas laranja é o mesmo que bicicletas cor de laranja. Vale ainda lembrar que, mesmo quando identifica uma cor, “laranja” pode ter plural, o que ocorrerá caso seja usado no sentido de “tons de laranja” (Na decoração, usou com parcimônia os laranjas e os vermelhos).

Que não se confunda “laranja” na acepção de cor com “laranja” na acepção de indivíduo que se presta à prática de diversos tipos de fraude. Este último é um substantivo e, como tal, tem flexão de número.

Ainda que, à semelhança de “empresa-fantasma”, sejam admitidas as grafias com hífen e sem hífen, sendo o segundo elemento um determinante específico, é mais seguro o uso do composto com hífen, de modo que não paire dúvida sobre as possibilidades de flexão.

O substantivo composto candidato-laranja, por ser formado de dois elementos variáveis, admite o plural candidatos-laranjas. Podendo o segundo substantivo ser interpretado como um elemento que limita o anterior, é também lícita a flexão apenas do primeiro elemento do composto (candidatos-laranja).

Quanto às candidaturas em si, o ideal é que se diga que são candidaturas de laranjas, ou seja, candidaturas de indivíduos ingênuos – ou não necessariamente ingênuos – que emprestam a própria identidade a outros para fins ilícitos.

A concordância parece ser mais fácil de resolver do que aquilo que mais espicaça a curiosidade do leitor, ou seja, a origem do termo. Por que, afinal, o nome de uma fruta tão saborosa assumiu esse sentido pejorativo?

Hipótese sobre a origem do termo

As várias hipóteses que andam pela internet não parecem mais que fruto da imaginação e, de tão fantasiosas, não se sustentam. Não é difícil que o atual sentido de “laranja” seja uma extensão do sentido anterior de “indivíduo tolo, otário”, dado que este se deixa usar por alguém mais esperto.

O que permanece incógnito é o elo entre o simplório, tolo, aparvalhado e a laranja. A meu ver, enquanto estivermos em busca de uma associação semântica com a fruta, dificilmente sairemos do atoleiro da dúvida.

As pessoas tendem a esquecer-se de que a língua tem outros mecanismos de criação de palavras para além das analogias e metáforas, embora estas sejam talvez os mais frutíferos.

Convido o leitor que tiver paciência a fazer um raciocínio um pouco diferente, baseado, é claro, em comportamentos observáveis na língua. Aviso aos mais sensíveis que terei de usar alguns termos de baixo calão a fim de explicitar o meu raciocínio.

Para lançar mão de exemplos facilmente acessíveis na memória, vamos, de início, ao termo “paca”, usado, na linguagem popular, no sentido de “grande quantidade” ou de intensidade (Fulano fala paca!), que, segundo o próprio Houaiss, nasce de uma alteração de natureza eufêmica (própria de eufemismo) das expressões chulas “para caralho” ou “para cacete”, ambas também empregadas como intensificadores. A forma “paca” ameniza o tabuísmo, o mesmo valendo para as expressões “para caramba”, com uso da interjeição de espanto de origem espanhola, e “para cachorro” (Fala para caramba! Fala para cachorro!). Pergunta-se: o que é que caralho, cacete, caramba e cachorro têm de comum? Todas têm três sílabas, são paroxítonas e iniciadas pela sílaba “ca-”. Pareceu estranho?

O leitor se lembrará por certo de ter ouvido ou dito a interjeição “cacilda!” diante de uma situação de espanto, admiração ou impaciência. Se procurar saber quem foi a tal Cacilda que deu origem à expressão, é provável que não chegue a lugar algum. Por outro lado, se observar a semelhança entre cacilda e cacete, estará no rumo certo. A semelhança formal faz que se use um termo no lugar de outro com transferência de significado, mais uma vez evitando o uso do palavrão.

O recurso não é nada novo na língua: “diacho”, por exemplo, é uma alteração de “diabo”, que, em outros tempos, era palavra a evitar. Muito bem. E o laranja? Onde é que ele entra nessa história?

A hipótese que podemos formular nessa linha de raciocínio é que, de início, se tenha usado o termo “laranjão”, com o sufixo “-ão” de aumentativo com matiz afetivo (o mesmo que ocorre em toleirão, parvalhão, bobalhão, paspalhão, bestalhão etc.) e que esse termo se tenha confundido com o informal “janjão”, que, embora não esteja nos dicionários regulares, aparece definido no Dicionário Informal  como “um cara abestalhado e lento para entender as coisas de uma forma geral, fácil de ser ludibriado”, o que demonstra ter existência na língua.

Ainda mais curioso é lembrar que Janjão é o nome de um personagem do conto “Teoria do Medalhão”, de Machado de Assis, que, ao atingir a maioridade, ouve do pai uma série de conselhos sobre o melhor caminho a seguir para ter sucesso na vida. O conto é uma das joias do bruxo do Cosme Velho, que, sob a forma de um diálogo, põe em cena um jovem e seu pai, a este cabendo encarnar a sua incansável veia irônica.

O termo “medalhão”, hoje meio fora de moda, descreve, de modo pejorativo, o indivíduo que obteve fama e que passou a viver em função disso ou, mais especificamente, um indivíduo de “infundada notoriedade” (Houaiss).

O Janjão de Machado de Assis é o protótipo do sujeito anódino, medíocre, que, por isso mesmo, na visão do próprio pai, tem toda a disposição para se tornar um verdadeiro “medalhão”:

Tu, meu filho, se me não engano, pareces dotado da perfeita inópia mental, conveniente ao uso deste nobre ofício. Não me refiro tanto à fidelidade com que repetes numa sala as opiniões ouvidas numa esquina, e vice-versa, porque esse fato, posto indique certa carência de ideias, ainda assim pode não passar de uma traição da memória. Não; refiro-me ao gesto correto e perfilado com que usas expender francamente as tuas simpatias ou antipatias acerca do corte de um colete, das dimensões de um chapéu, do ranger ou calar das botas novas. Eis aí um sintoma eloquente, eis aí uma esperança, No entanto, podendo acontecer que, com a idade, venhas a ser afligido de algumas ideias próprias, urge aparelhar fortemente o espírito. As ideias são de sua natureza espontâneas e súbitas; por mais que as sofreemos, elas irrompem e precipitam-se. Daí a certeza com que o vulgo, cujo faro é extremamente delicado, distingue o medalhão completo do medalhão incompleto.

O sentido dado a “janjão”, somado à semelhança fônica com “laranjão” parece trazer uma pista. Teríamos ainda de entender por que “laranjão”, sendo válida a hipótese, teria recuado para “laranja”. Esse, no entanto, não seria o maior dos problemas.

Veja-se, para tanto, o que ocorreu com o nome da doença chamada “sarampão”. Popularmente percebido como aumentativo (embora não o fosse), o termo, por derivação regressiva, recuou para um suposto grau positivo na forma que se consagrou: sarampo. E hoje pode até parecer estranho dizer que “sarampo” veio de “sarampão”.

Pode-se dizer que algo semelhante, embora não idêntico, ocorreu com o termo “lanterninha”, claramente um diminutivo de “lanterna”. Era desse modo que se chamavam os funcionários das salas de cinema que, com uma pequena lanterna, ajudavam os retardatários a encontrar um lugar para se sentar depois que o filme já tinha começado e as luzes estavam apagadas. Quem precisava do lanterninha era quem chegava atrasado. Está talvez aí a origem do uso do termo para fazer alusão ao que chega em último lugar num campeonato esportivo. Detalhe: nessa acepção, as pessoas passaram a usar o termo no grau positivo (lanterna), rechaçando o sufixo de diminutivo, novamente num processo de derivação regressiva.

E mais: o termo “lanterna”, nesse sentido, já não está restrito à área esportiva, embora predomine nesse campo. Veja este exemplo, que, aliás, nos reconduz ao laranjal da política: “Outra candidata campeã de dinheiro do PSL, mas lanterna de votos, é Mila Fernandes. Teve 334 votos a deputada federal”.

Ora, se a hipótese for válida, “janjão”, por semelhança fônica, terá resultado em “laranjão” (com sufixo “-ão”, de matiz afetivo) e este terá regredido a um grau positivo, tendo passado a “laranja”(como sarampão > sarampo). Assim: janjão > laranjão > laranja.

Ainda que não tenhamos nenhuma comprovação disso – daí estarmos aqui falando meramente em hipótese –, o raciocínio pode servir para lembrar que parte do fascínio da língua está nas surpresas que ela põe no caminho de quem se dedica ao seu estudo.