O monstro da lagoa

Thaís Nicoleti

A determinação de que estudantes cantassem o hino nacional todos os dias, encaminhada às escolas do país pelo ministro Vélez Rodrigues, não é o maior dos problemas da última gafe do Ministério da Educação, que, há menos de um mês, virou piada ao publicar em rede social uma vexatória mensagem em resposta a uma reportagem, na qual, na falta de qualquer argumento razoável, acusava o jornalista de ter sido treinado pela KGB, o serviço secreto soviético.

É fato, no entanto, que quem, tendo frequentado a escola durante o regime militar, teve de cantar o hino em posição de sentido, dia após dia, associa de imediato esse presumível respeito aos símbolos nacionais aos demais “valores” do governo ditatorial que tomou o país por 20 anos.

Ainda que seja normal em algum momento da vida escolar aprender o hino nacional – sendo, afinal, de praxe entoá-lo em cerimônias oficiais ou eventos esportivos internacionais –, para isso não se faz necessário implantar disciplina militar, menos ainda obrigar os alunos a levar a mão ao peito, como se prestassem homenagem a alguma divindade. O efeito, aliás, pode ser o contrário, como relata o colega Hélio Schwartsman.

O pior em todo esse episódio, porém, foi a carta do ministro, a ser obedientemente lida por professores e diretores diante de seus alunos, instados no final a repetir o bordão da campanha bolsonarista, conclusão do texto:

“Brasileiros! Vamos saudar o Brasil dos novos tempos e celebrar a educação responsável e de qualidade a ser desenvolvida na nossa escola pelos professores, em benefício de vocês, alunos, que constituem a nova geração. Brasil acima de tudo. Deus acima de todos!”

Para piorar o que parecia não ter como ficar pior, havia a determinação de que os alunos fossem filmados enquanto cantassem o hino nacional e de que o vídeo fosse enviado ao MEC acompanhado dos nomes de professores e diretores – em cena de doutrinação explícita.

Em um governo que defende uma escola “sem partido”, é muita falta de coerência. Fujam da “doutrinação marxista”, que é como chamam qualquer tentativa de fazer aflorar o espírito crítico dos estudantes, e sejam abduzidos pela doutrinação pentecostal-militarista do partido do governo.

A reação nas redes sociais, bem como nos veículos da imprensa (e chamo a atenção para o texto do colega Ranier Bragon), não demorou, e o ministro recuou da obrigatoriedade de fazer a palavra de ordem da campanha eleitoral ser ecoada nas escolas.

Enquanto isso, contudo, já havia uma escola atendendo voluntariamente ao agora “pedido” do ministro. Bolsonaristas, os que ainda não se desencantaram com dois meses de noticiário,  podem, atropelando a lei, induzir as crianças a fazer o vídeo nas escolas, e pais igualmente pertencentes a esse grupo político poderão autorizar a divulgação das imagens – tudo voluntariamente, é claro. Enfim, a polarização vai se instalar no ambiente escolar, onde o que está em jogo é a formação dos jovens e a sua preparação para o pleno exercício da cidadania num país democrático e, é bom lembrar, signatário da Declaração dos Direitos Humanos.

O fato é que atitudes desse tipo (sabe-se lá o que ainda virá) despertam monstros adormecidos no fundo da lagoa, que, com a falta de traquejo de quem acaba de sair das trevas, voltam, sem nenhuma sutileza, a se apresentar como modelos possíveis.

Veja-se o professor Eduardo Lobo Botelho Gualazzi, da Faculdade de Direito da USP, que acaba de divulgar entre os alunos texto em que reforça preconceitos e estereótipos (pobres o são por se terem recusado a trabalhar, ativistas de esquerda são “energúmenos”, pessoas LGBT são “aberrações”, casamentos devem dar-se “entre homem e mulher da mesma etnia”) e finalmente, como se ainda precisasse, declara ter votado na turma que está no poder (Bolsonaro, Major Olímpio, Doria etc.).

Cada vez que um ministro faz uma maluquice, da qual volta atrás por meio de algum “post” em redes sociais (em geral, sob a mais esfarrapada das desculpas), um monstro ganha salvo-conduto para emergir do fundo da lagoa.