Insulto: uma estratégia de quem não tem argumentos
As últimas semanas, em que o presidente da República nos brindou com declarações mais agressivas ainda que as de costume, registraram uma espécie de reação catártica nas redes sociais, traduzida em listas de adjetivos capazes de exprimir o sentimento de repúdio à grosseria, ao deboche, ao escárnio, à avacalhação.
As pessoas entraram na brincadeira. O professor Ernani Terra, com sua conhecida agudeza de espírito, publicou no Facebook a seguinte aula-provocação:
ADJETIVOS são palavras usadas para atribuir uma propriedade singular a elemento que é denominado por um substantivo. Podem, portanto, funcionar como adjetivo palavras como [as seguintes]:
racista, autoritário, homofóbico, machista, intolerante, fascista, imbecil, mentiroso, estúpido, mal-educado, tosco, preconceituoso, inescrupuloso, sórdido, ignorante, truculento, pulha, desassisado, torpe, boquirroto, lambe-botas, estulto, estúpido, parvo, bronco, boçal, obtuso, sacripanta, chucro, ignóbil, tacanho, prepotente, agressivo, inepto, tacanho, desairoso, bruto, infame, odioso, estúpido, impolido, grosseiro, provocador, vil, deplorável, indigno, estouvado, leviano, abjeto, violento, velhaco, patife, desonroso, incivilizado…
A lista é enorme. Fiquem à vontade para ampliá-la.
PS: não preciso dizer a que substantivo os adjetivos devem fazer referência.
A caixa de comentários logo se encheu de uma grande quantidade de adjetivos, aqui organizados em ordem alfabética: abestalhado, abilolado, abjeto, anta, ardiloso, arrogante, asselvajado, avilanado, banana, bandalho, beócio, bizarro, bocó, boquirroto, burro, canalha, chicaneiro, chucro, cínico, covarde, cretino, criminoso, cruel, debochado, desnecessário, destrutivo, ditador, energúmeno, enganador, escroto, estroina, estrume, estúrdio, excrementoso, falacioso, falso, fingido, gatuno, genocida, gentalha, hipócrita, ignorante, impostor, incapaz, incompetente, inepto, inescrupuloso, infame, infeliz, invejoso, larápio, malcriado, maldoso, marionete, “micto”, monstro, morfético, neandertal, néscio, nojento, odioso, otário, parvo, pelintra, pérfido, prevaricador, pulha, pusilânime, ridículo, sacripanta, safado, satânico, tacanho, tosco, “vilento”.
O último da lista bem poderia figurar na coluna de Sérgio Rodrigues, na Folha, em que o autor foi além e conclamou os leitores a inventar palavras (os neologismos) com a mesma finalidade, endereçadas ao mesmo personagem.
Um de nossos leitores, o sr. Mouzar Benedito, no Painel do Leitor, da Folha, em vez de recorrer aos neologismos, respondeu ao desafio tirando do fundo do baú uma saborosa lista de palavras, todas com o sabor vintage do arcaísmo, que aqui reproduzo: latrinário, injucundo, malignante, sanguissedento, bilhostre, trastalhão, estupor maligno, merca-honras, cheringalho, bandurrilha, gangolino, coração de víbora, escalfúrnio, fedífrago, bilontra, bisbórria.
Muito divertido, mas o que diz aquele a quem se dirigem os nomes arrolados? O presidente, quando confrontado com suas más-criações, retruca ser esse o “seu jeito”. Esbanjar impropérios e distribuir ofensas, ainda que paradoxalmente, pode ser mesmo o seu jeito de ser (ou parecer) sincero – pelo menos aos olhos de seus simpatizantes. E isso cria certa confusão.
Ser sincero é exprimir-se “sem artifício nem intenção de enganar ou de disfarçar o seu pensamento ou sentimento (pessoa sincera)”, segundo nos ensina o dicionário Houaiss, que continua assim: “que é dito ou feito de modo franco, isento de dissimulação (felicitações sinceras, arrependimento sincero)”; “em quem se pode confiar; verdadeiro, leal (amigo sincero)”; “que demonstra afeto; cordial (abraço sincero)”.
Segundo Schopenhauer (1788-1860), “os amigos se dizem sinceros; os inimigos o são”. Ora, o aforismo reforça a ideia de que os elogios são sempre falsos e só vêm a propósito de interesses ocultos, enquanto as ofensas são as “verdades” que ocultamos por polidez (ou falsidade).
Assim, quando descobrimos no outro uma falha, um defeito qualquer, uma atitude questionável, logo temos a certeza de que, então, sim, sabemos quem de fato é aquela pessoa.
Em tal pensamento forçosamente se embute um traço de descrença no ser humano, de profundo pessimismo ante a vida. Somos todos vilões disfarçados, odiamos uns aos outros. Estamos em guerra com nossos vizinhos, com nossos colegas de trabalho, com as pessoas com quem dividimos os espaços coletivos. Se assim for, aquele sujeito que nos ofende gratuitamente será mesmo o nosso espelho.
O mesmo Schopenhauer, tão conhecido por seu pessimismo, no entanto, nos dirá que o insulto pode ser a estratégia argumentativa de quem não tem como enfrentar um debate de ideias: “Quando perceber que o adversário é superior e que você acabará por perder a razão, torne-se ofensivo, ultrajante, grosseiro, isto é, passe do objeto da contestação (dado que aí a partida está perdida) ao contendor e ataque de algum modo sua pessoa”. O trecho está na “Arte de Ter Razão”, citado na introdução de Franco Volpi à conhecida “Arte de Insultar”, ambas obras do filósofo alemão).
Ao que tudo indica, a suposta sinceridade do personagem não passa de um subproduto da sua inépcia e incapacidade de argumentar sobre bases racionais e nada tem de positivo. Infelizmente, não há como ignorar o interlocutor (conforme recomendaria o próprio filósofo), pois ele empunha a caneta mais importante do país e a ele foi passada uma procuração para definir os nossos caminhos. Enquanto ele distrai a nossa indignação, sua caneta vai deslizando sobre o papel.
Talvez, então, depois das listas catárticas de insultos, seja chegada a hora de convocar à cena o campo semântico da solidariedade e do companheirismo, para que não nos esqueçamos dos nossos valores mais caros.
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Domingo, 11 de agosto de 2019: Uma leitora nos avisou de que os adjetivos colhidos na página do Facebook do professor Ernani Terra não estavam em ordem alfabética, conforme anunciado. De fato. Estava ela coberta de razão. Tentei agora corrigir o erro e confesso que me senti frustrada ao perceber que a lista é muito modesta. Ao mexer na ordem das palavras, outros adjetivos me vieram à mente, em total desordem alfabética: paspalho, paspalhão, bocó, quizilento, debochado, cínico, chato, desagradável, bananão, velhaco, patife, rezingueiro, arengueiro…