Transparecer e deixar transparecer

Thaís Nicoleti

“Moro, em conversa no aplicativo, transpareceu contrariedade: ‘Não é melhor esperar acabar?’”

A frase apareceu em um texto sobre os vazamentos da Lava Jato, em que o então juiz Sérgio Moro hesitava ante a possibilidade de erguer um monumento à referida operação em Curitiba, ideia aventada pelo procurador Deltan Dallagnol.

Não pretendo comentar a criatividade do procurador, que queria promover uma nova modalidade de turismo na cidade, o “turismo patriótico”, mas já fico a imaginar as multidões em disputa por um selfie diante de um busto dos novos heróis nacionais, bem como a desejada repercussão na mídia, nas redes sociais… Nada como uma inteligência empreendedora!

A frase acima foi destacada aqui por um motivo com bem menos poder de instigar a curiosidade dos milhares de internautas sedentos de novidade: o uso peculiar do verbo “transparecer” feito pelo redator: Moro transpareceu contrariedade.  Ora, se “transparecer” é aparecer total ou parcialmente, o que transparece é a contrariedade, não a pessoa em si (no caso, Moro). É a contrariedade de Moro que transparece na conversa com Dallagnol.

Para que a ação recaia sobre Moro, sendo ele o sujeito da oração, será necessário criar um período um pouco mais complexo, usando o verbo auxiliar causativo “deixar”: Moro, em conversa no aplicativo, deixou transparecer contrariedade, o que equivale a dizer que Moro, em conversa no aplicativo, deixou que sua contrariedade transparecesse.

O redator não está sozinho no uso desse regime impróprio do verbo “transparecer”. O leitor poderá aguçar a percepção e encontrar outros casos nas suas leituras diárias (não só na Folha, é claro).

Em recente texto, um ex-assessor de Flávio Bolsonaro fez a seguinte declaração acerca do caso Queiroz, reproduzida entre aspas: “Fabrício Queiroz sempre transpareceu receio de que essa atividade empresarial chegasse ao conhecimento do [então] deputado estadual Flávio Bolsonaro, pois acreditava que ele não concordaria com a forma que era realizada”.

Novamente estamos diante desse falso regime do verbo “transparecer”. Mais curioso ainda é este uso: “De sua parte, se de início transpareceu concordar, Cármen Lúcia adotou súbita rigidez contra o agendamento do tema”. Nesse caso, o mais adequado seria usar o verbo “parecer” (se, de início, pareceu concordar).

Há casos em que haveria ganho em substituir “transparecer” por “demonstrar”. Vejamos este:  “O ministro procurou transparecer tranquilidade —na avaliação da oposição, deboche. Descontraído, Moro comeu e bebeu refrigerante e café durante a audiência, e riu com o presidente da CCJ.”

Do ponto de vista semântico, vale observar que a ação de “transparecer” tem o traço de não intencionalidade, de algo que não conseguimos disfarçar ou esconder, donde a estranheza da construção acima, uma vez que “procurar” denota intenção. É por isso que “demonstrar” seria uma escolha lexical mais adequada (O ministro procurou demonstrar tranquilidade – na avaliação da oposição, sua atitude denotava deboche).

Em suma, um sentimento ou uma intenção transparecem na fisionomia, nas palavras ou nas atitudes de alguém (Sua irritação transparecia no modo como gesticulava; Sua emoção transparecia em sua voz); uma pessoa deixa transparecer um sentimento ou intenção (Ele não deixava transparecer o nervosismo). Havendo a intenção de que o outro perceba certo sentimento ou intenção, o melhor é usar o verbo “demonstrar” (Ele não demonstrava o que sentia, Ele demonstrava imenso apreço pelos colegas).

Da mesma família do verbo “transparecer” é o substantivo “transparência”, que, usado na moda ou na política, sempre sugere aquilo que não impede a visão do que é verdadeiro. Assim como a transparência nas roupas revela o corpo, quando na política e nas relações humanas, ela revela as verdadeiras intenções e sentimentos. Ao usar o verbo “transparecer”, vale lembrar que ele sugere a ideia de deixar aparecer algo que talvez a pessoa desejasse esconder. Em tempos de “fake news”, mais do que nunca, é preciso buscar a transparência, aquilo que está sob o disfarce de notícia.