Cafonice linguística não é critério de avaliação do Enem

Outrossim, destarte, é mister, faz-se necessário, ademais, hodiernamente, de acordo com os fatos supracitados… Quem já tenha corrigido provas de redação de concursos públicos, de vestibulares e mesmo do Enem certamente, em algum momento,  ficou tomado de enfado diante de termos como esses, que remetem a uma formalidade típica de órgãos burocráticos.

Seria interessante procurar saber o motivo de tal vocabulário fazer parte do repertório de jovens aspirantes a uma vaga na universidade ou no serviço público. Uma hipótese é que apostilas ou cursos preparatórios para concursos públicos venham disseminando esse tipo de linguagem, própria da redação oficial, como se essa fosse a única forma de escrever no registro formal culto da língua. Trata-se apenas de uma hipótese, pois nem mesmo o Manual de Redação da Presidência da República faz esse tipo de recomendação.

O que não é justo é atribuir ao Enem o estímulo à cafonice linguística, embora seja fato que muitas das redações que atingem a pontuação máxima no exame realmente contenham termos e expressões como os “supracitados”. Daí a dizer que foram valorizadas por causa disso vai uma longa distância. Não será, por certo, esse o critério de avaliação de desempenho dos estudantes. Na cartilha do participante, aliás, estão descritos os critérios de avaliação da redação pela banca examinadora. Uma leitura cuidadosa desse material pode afastar a impressão de que o resgate de termos antiquados seja um item valorizado na redação do Enem.

Ensinar alguém a escrever não é tarefa das mais fáceis e pode haver professores que, na tentativa de ajudar seus alunos, façam certas recomendações, as quais, quando seguidas à risca, acabam por tornar os textos um tanto postiços. Há quem diga que “hoje em dia” ou “nos dias de hoje” são expressões coloquiais e que “o certo” seria usar o advérbio “hodiernamente”, que, diga-se de passagem, “hoje em dia”, pouca gente usa.

Empregar mesóclises (torná-lo-ia, percebê-lo-ão etc.) e termos já um tanto empoeirados não faz um texto ser melhor que outro. O mesmo vale para o uso de palavras raras. Esse tipo de linguagem, marcado pela afetação e pela falta de naturalidade, é chamado de “preciosismo”. O curioso nessa história é que, desde o modernismo, que já está quase completando uma centena de anos, esse tipo de uso da linguagem tem sido objeto de sátira.

É fato que, ainda hoje, paira na percepção do senso comum a ideia de que o modo como falamos é “errado”, donde a escrita, por ser formal, ter de ser muito diferente da fala. O receio de “errar” ou a dificuldade de saber ao certo o que é coloquial e o que é formal podem estar na origem dessas escolhas lexicais, que, ao menos aparentemente, seriam uma garantia de estar navegando no registro culto da língua.

Há quem ensine aos alunos que o último parágrafo do texto dissertativo deve começar com a construção “de acordo com os fatos supracitados, resta evidente que” por entender que, depois dela, só será possível escrever algo que conclua o raciocínio desenvolvido anteriormente, amarrando, por assim dizer, as ideias.

Não é preciso dizer que essa muleta, além de não garantir o resultado esperado, subestima o estudante, já que parte do pressuposto de que, sem isso, ele não conseguiria conduzir seu raciocínio a uma conclusão. O Enem e os principais vestibulares do país esperam encontrar estudantes que saibam expressar-se com autonomia, não autômatos que repitam fórmulas de texto ou “modelos de redação”.  O efeito dessas expressões na redação costuma ser artificial, denotando certa ingenuidade, pois, em geral, aparecem salpicadas no texto, não estando este por inteiro vazado nesse registro.

É importante que fique claro que essa linguagem rebarbativa que tem invadido as provas de redação não é exigida nem mesmo estimulada pelo Enem ou pelos exames vestibulares.  Por outro lado,  também não se pode punir o estudante que empregue esses termos, caso o faça corretamente, pois a avaliação não é estilística.

O texto que se espera deve estar, sim, redigido na modalidade formal culta, com respeito às normas gramaticais (concordância, regência, pontuação etc.), apresentar vocabulário o mais preciso possível e, sobretudo, estar bem articulado, com ideias desenvolvidas e hierarquizadas, demonstrar a capacidade do estudante de estabelecer um raciocínio claro e bem fundamentado acerca do tema proposto.