Novo livro de Carlos A. Faraco e Eduardo Vieira ensina a escrever na universidade
Um dos primeiros desafios do estudante universitário é lidar com a rotina de ler e escrever. A quantidade de leituras a fazer, o tempo de executá-las e a sua contrapartida, que é a produção textual, provocam em muitos um impacto inicial, que não raro se alia a dificuldades herdadas de sua vida escolar pregressa.
Não por outro motivo, os pesquisadores Carlos Alberto Faraco (ex-reitor da Universidade Federal do Paraná), autor de vasta produção acadêmica na área de linguística, e Francisco Eduardo Vieira, linguista e professor na Universidade Federal da Paraíba, reuniram suas experiências como docentes universitários e se lançaram na empreitada de escrever uma coleção de livros para promover, em suas palavras, o “letramento universitário”.
Os autores conversaram com o blog por ocasião do lançamento do primeiro volume da coleção “Escrever na Universidade” (editora Parábola), intitulado “Fundamentos”.
Faraco conta que há, entre os professores do ensino superior, uma percepção de que muitos estudantes têm chegado à universidade sem um domínio maduro da leitura e da escrita. Como sociolinguista, atribui o problema a fatores históricos. “O Brasil nunca foi um país letrado. Temos uma história de pouca familiaridade com a língua escrita, o que continua afetando o sistema escolar como um todo e limitando as relações dos alunos com a língua escrita”, afirma.
Vieira, por sua vez, credita o problema mais especificamente à falta de leitura de textos formais por parte dos jovens: “A maioria dos jovens parece ler poucas notícias, reportagens, artigos de opinião, artigos de divulgação científica, leis, clássicos da literatura em língua portuguesa, entre outros gêneros semelhantes em estrutura e norma aos gêneros acadêmicos que eles precisarão ler e escrever quando chegarem ao ensino superior”.
Ser um bom leitor
Pode-se dizer, então, que o primeiro passo para escrever bem é ser um bom leitor. Desmistificando a percepção do senso comum de que ler é uma atividade passiva, de mera recepção de informações, os autores mostram que, ao contrário disso, ler é um evento ativo, uma vez que cabe aos leitores construir os sentidos do texto, mobilizando sua rede de conhecimentos prévios para estabelecer relações entre as ideias.
Fazem questão de lembrar que todo texto tem um autor (ainda que não claramente identificado), que escreve para alcançar certos resultados. Deixar de perceber isso é ser ingênuo e ler menos do que está escrito.
Na sala de aula
Essas e muitas outras questões complexas são tratadas com a simplicidade de uma conversa. Ao ler o livro, tem-se a sensação de estar dentro de uma sala de aula, ouvindo as explicações de um professor muito didático. E isso tanto pelo tom adotado como pela seleção de textos de apoio, todos escolhidos a dedo, apropriados não só para a análise formal que deles se faz como também para suscitar reflexões necessárias sobretudo para quem esteja envolvido na produção de conhecimento: pós-verdade, fake news e variação linguística estão entre os temas abordados.
Todas as unidades contêm propostas de exercícios, o que sugere que o livro pode ser adotado como instrumento didático – não só na universidade, ainda que os universitários sejam o seu público-alvo, mas mesmo na fase preparatória para os vestibulares e o Enem (no primeiro volume, apenas a unidade 4 é específica para os universitários).
O estudo dos gêneros textuais
Todo o trabalho de ensinar a escrever bem (e a ler bem) é baseado no estudo de gêneros textuais, que, aliás já vêm sendo solicitados nos principais exames vestibulares. “Nós, quando escrevemos, produzimos não apenas um texto, mas um texto situado numa determinada atividade social (o jornalismo, o direito, a ciência, a literatura, a ensaística, a publicidade etc.), na qual predominam determinados gêneros. Por isso, tem-se enfatizado o estudo dos gêneros textuais. O aluno precisa perceber que sua escrita é situada socialmente e que, no interior de cada atividade sociointeracional, há gêneros específicos”, explica Faraco.
A percepção de que todos os textos pertencem a algum gênero e de que é esse gênero que determina as características de cada um deles é a base sobre a qual se constrói o aprimoramento do processo de leitura e escrita.
“Se formos instados a atender uma determinada demanda de nossa vida prática, buscaremos o gênero textual que historicamente, em nossa cultura, vem sendo utilizado com recorrência nessa situação. Saber escolher os gêneros textuais adequados (um requerimento, um abaixo-assinado, uma carta de reclamação ou mesmo um post numa rede social) faz parte, portanto, de nossa competência de sujeitos de linguagem imersos numa sociedade de cultura letrada”, explica Vieira.
Os autores chamam a atenção para o fato de serem infinitos os gêneros, exatamente por estarem estes sujeitos a situações de comunicação, com seus próprios objetivos, embora possam agrupar-se segundo graus de formalidade (informais, semiformais, formais, ultraformais).
Como escrever bem
Hoje é menos comum, mas há não muito tempo proliferavam livros que se propunham a ensinar a escrever por meio de fórmulas de simplificação (não use gerúndio, substitua a expressão x pela expressão y etc.). O leitor tinha diante de si um compêndio de recomendações que se pretendiam objetivas, organizadas em listas de isto sim/isto não. Escrever, sob a tutela desse tipo de obra, era antes um suplício que um prazer.
Segundo Faraco, “listas e macetes – essa visão fragmentada e miseravelmente instrumentalista – não contribuem em nada para o domínio maduro da escrita”. Para o professor, os caminhos que dão resultado são bem diferentes disso: “É preciso ler e analisar textos, mergulhar numa tradição discursiva e sentir na prática os horizontes e limites dos gêneros aí praticados, bem como escrever e refazer o escrito, ou seja, aprender a ser, ao mesmo tempo, autor e leitor de seus próprios textos”.
“Esse tipo de literatura me faz lembrar algumas seções de gramáticas quinhentistas e seiscentistas, que proscreviam listas de solecismos e barbarismos, espécies de ‘vícios de linguagem a serem remediados’”, afirma Vieira, que, antes que alguém imagine o contrário, ressalta ser importante o estudo da gramática da língua. Para ele, “o componente estrutural e normativo dos textos escritos também é um conhecimento que não se sustenta apenas na mera intuição linguística; a reflexão sobre questões normativas, atrelada a uma perspectiva pedagógica que leve em conta a variação não só na fala, mas também na escrita, precisa estar no horizonte de toda professora e de todo professor de português”.
A leitura do volume “Fundamentos” deixa claro, a todo momento, que a escrita pode ser prazerosa mesmo nos domínios da produção acadêmica, em que é preciso adequar-se aos padrões de formalidade exigidos pelos gêneros. Há no senso comum uma falsa percepção de que o texto acadêmico tem de ser frio ou enfadonho, mais uma ideia que Faraco e Vieira desmistificam.
O livro mostra, enfim, que é possível aprender a escrever bem, mas que a tão desejada fórmula mágica para atingir esse objetivo está antes no processo de letramento como um todo (no aprendizado da leitura competente e na internalização de práticas de escrita) que em alguma lista de recomendações fragmentadas.
Educação: competição ou solidariedade?
A todo processo educativo subjaz uma filosofia, que expressa o que se pretende atingir ao fim do trajeto e como fazer isso. No caso do letramento, isso não poderia ser diferente. Tendo como objetivo a produção de textos com autonomia, o ensino da leitura e da escrita está intimamente ligado à construção da cidadania.
Recentemente o ministro da educação, Abraham Weintraub, disse a uma plateia de crianças que o Brasil não tem espaço para todos, “só para os melhores”. Segundo ele, estimular a competitividade é uma “técnica de gestão” que visa a fazer que as pessoas deem o seu melhor. Há algo de perverso nessa afirmação, uma vez que, a levá-la às últimas consequências, estaríamos dizendo que nem todos merecem ser cidadãos, numa espécie sombria de pedagogia da exclusão.
Segundo o professor Faraco, que considerou lastimável o teor da afirmação, uma vez que emanada de uma autoridade da área de educação, a competição, no caso específico do ensino da escrita, não leva a lugar nenhum. “Uma das atividades mais eficazes é a refacção coletiva dos textos produzidos pelos alunos. Trata-se de uma construção em conjunto do domínio da produção de textos, em que todos podem perceber as qualidades dos textos dos colegas e, ao mesmo tempo, os caminhos para aperfeiçoar a expressão de todos. É uma prática coletiva e solidária em que todos avançam sem precisar excluir ninguém”, explica, lembrando que o exercício pleno da cidadania “envolve também o desenvolvimento de uma ética da solidariedade social, e não de uma perspectiva competitiva, individualista e excludente”.
Escrever na Universidade: Fundamentos [vol.1], editora Parábola (2019), de Francisco Eduardo Vieira e Carlos Alberto Faraco