Tema constante de textos e conversas, pandemia muda vocabulário cotidiano
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A pandemia do coronavírus mudou a vida das pessoas nas mais diversas dimensões, inclusive no vocabulário. Os textos da imprensa, as conversas do dia a dia, o assunto das “lives”, tudo passou a girar em torno de um mesmo tema e, consequentemente, de um conjunto muito específico de palavras e expressões. Alguém consegue falar de outra coisa?
Quem poderia imaginar que o nome científico de um vírus seria pronunciado dia após dia por toda a população, não apenas por médicos e cientistas? O termo “coronavírus”, concebido em razão da semelhança do formato do micro-organismo com o de uma coroa (em latim, “corona”), está nos dicionários e, como se vê, não é uma palavra nova, pois denomina uma família de vírus já conhecida dos cientistas. Por esse motivo é que este que ora acomete um número crescente de pessoas, embora tenha um nome oficial (Sars-CoV-2, ou seja, coronavírus 2 da síndrome respiratória aguda grave), é chamado de “novo coronavírus”.
Covid-19: nome internacional
A doença transmitida pelo patógeno veio a chamar-se Covid-19, um termo de uso internacional formado das sílabas iniciais de “corona” e de “vírus”, acrescidas da letra “d”, de “disease” (“doença”, em inglês), e da dezena final de 2019, ano em que foi registrado seu primeiro caso.
Não propriamente uma sigla, mas antes um acrônimo, Covid-19, em português, acolhe, de preferência, o gênero gramatical feminino. O dicionário brasileiro “Houaiss”, em sua versão eletrônica, e o português “Priberam” já o incorporaram às respectivas bases de dados e sugerem o feminino, que se apoia na tradução “doença do coronavírus”. Em inglês, a questão não se apresenta, mas, em línguas como o português, o francês, ou o espanhol, entre outras, é preciso definir o gênero.
A RAE (Real Academia Espanhola), instituição similar à nossa Academia Brasileira de Letras, pôs o tema em discussão e, por enquanto, o nome da doença ainda não foi incorporado oficialmente ao léxico espanhol.
É bom que se diga que o “Houaiss” registra Covid-19 também como masculino, porém na acepção de “cepa do coronavírus” causadora da infecção de mesmo nome. O dicionário americano “Merriam-Webster”, que já incluiu o verbete Covid-19, também dá ao termo os dois significados. No inglês “Cambridge”, o verbete ganhou apenas o sentido de “doença”. O francês “Larousse” usa o gênero masculino ao mencionar Covid-19 no verbete “coronavirus”, tomando-o como um tipo de vírus. Embora o “d” de Covid-19 indique ser o termo o nome da infecção, há certa tendência a expandir o seu uso também para o novo coronavírus.
O nome foi criado pelo Comitê Internacional de Taxonomia de Vírus, que teve a preocupação de propor um termo que fosse pronunciável em várias línguas e que evitasse a fixação de alguma denominação com potencial de estigmatizar povos, regiões, grupos ou mesmo animais. A memória de casos anteriores, como o da gripe espanhola, que, aliás, não se originou na Espanha, ou o da chamada gripe suína, que provocou o abate desnecessário de animais em larga escala, esteve no centro da discussão.
Ainda que se tenha chegado a um nome internacional, que tem o mérito de identificar com neutralidade e uniformidade uma doença que atinge o planeta como um todo, o verbete Covid-19 do “Merriam-Webster” inclui uma nota que informa ter o vírus sido identificado pela primeira vez na cidade de Wuhan, na China, em dezembro de 2019, dado que não aparece nas outras obras consultadas.
Epidemia ou pandemia?
Estar presente em todas as partes do mundo é o que faz de uma epidemia uma “pandemia”. A diferença entre um termo e outro, ambos de origem grega, está ligada à extensão do quadro de disseminação. Quando se espalha por países de todos os continentes, a epidemia passa à categoria de pandemia. Foi por isso que, até 11 de março de 2020, a imprensa falou em “epidemia de coronavírus” e, a partir dessa data, com a declaração da Organização Mundial da Saúde, passou a empregar o termo “pandemia”.
Quarentena, distanciamento social e “lockdown”
Diante da falta de uma vacina ou de medicamentos seguros que garantam a cura da doença, os epidemiologistas têm recomendado no Brasil o “distanciamento social”, que é diferente de “quarentena” e de “lockdown”.
“Quarentena”, na origem um numeral coletivo referente a 40 elementos, é também um substantivo que nomeia o isolamento durante certo tempo (de início, 42 dias) de indivíduos e mercadorias provenientes de regiões assoladas por epidemias. Aos poucos, sofreu apagamento do traço quantitativo próprio do numeral, tornando-se apto a caracterizar diferentes espaços de tempo. Explica-se, portanto, o emprego da expressão “quarentena de 14 dias”, usada em referência ao período de isolamento equivalente ao intervalo de incubação do novo coronavírus.
O termo quarentena, embora se alterne de modo impreciso com a expressão “distanciamento social”, sobretudo nas quedas de braço entre os defensores e os detratores da restrição à circulação, designa uma medida de isolamento temporário à qual se sujeitam apenas os infectados e aqueles que tiveram contato com pessoas infectadas.
O distanciamento social é uma medida mais branda, que abrange a população de determinada região e cuja eficácia depende da adesão maciça das pessoas. Foi por causa dessa ação que muitos trabalhadores transferiram suas atividades para o espaço de suas residências, transformando o “home office” (trabalho remoto) em sua nova rotina.
Da mesma forma, estudantes e professores fizeram a sala de aula migrar para as telas de computadores, e o recurso da videoconferência logo se popularizou. Cinemas e salas de espetáculo fecharam, e os serviços de “streaming” se ampliaram. Compras pela internet, pedidos de refeições por aplicativo e uma série de mudanças de hábito são consequência dessa medida de sofreamento da pandemia.
Diante da redução da adesão da população ao distanciamento social, seja pelo cansaço, seja pelo desencontro na comunicação vinda das várias instâncias administrativas do país, fruto da ideologização da crise sanitária, existe a possibilidade de que uma medida mais drástica venha a ser tomada, o chamado “lockdown”.
O termo, que quer dizer “confinamento”, é usado quando as autoridades impõem restrições severas que obrigam as pessoas a manter-se em reclusão, ressalvando-se os profissionais de saúde, de coleta de lixo e de segurança, cujas atividades são consideradas essenciais.
Pandemia e cenário político no Brasil
No Brasil, a pandemia encontrou um cenário político peculiar: o presidente da República, diferentemente de médicos, cientistas, governadores de estados da Federação e prefeitos, demonstra não acreditar no poder devastador da doença, que já chamou de “gripezinha” – e o diminutivo aqui sugere baixa intensidade. Tem insistido em sair às ruas sem máscara, cumprimentar pessoas, eventualmente tossir e, sobretudo, afirmar com todas as letras que as pessoas deveriam estar tocando suas atividades sem se preocupar, afinal todos vão morrer um dia.
O resultado desse descompasso é uma grande confusão; e a população, já acostumada à polarização política, enfrenta a pandemia tomando partido. Há pouco tempo, o nome de um fármaco antimalárico tornou-se bandeira ideológica: a cloroquina esteve no centro de acalorados debates entre os defensores de seu uso no combate à Covid-19, mesmo sem comprovação de eficácia e sem conhecimento de seus efeitos colaterais, e os adeptos do #fiqueemcasa.
O simples uso de uma máscara de proteção para prevenir o contágio também divide o eleitorado: os que acreditam na ciência e os que a desprezam se encontram na rua, na farmácia, na padaria, no açougue… Quem imaginaria que uma dessas máscaras seria o pivô de uma briga, com tiros e morte, dentro de um supermercado?
Vocabulário científico na boca do povo
Se, por um lado, muitas dessas palavras acionam um conjunto de significados contextuais que vão além do dicionário, por outro, o noticiário trouxe para o cotidiano expressões de uso científico. “Pico da epidemia” e “achatamento da curva”, por exemplo, caíram na boca do povo. Uma e outra estão relacionadas ao desenho da linha nos gráficos de evolução da disseminação do vírus. O pico sugere aumento intenso e abrupto no número de casos, situação que pode levar o sistema de saúde a colapsar; já uma curva achatada indica desaceleração e, portanto, possibilidade de rodízio dos leitos disponíveis.
Anglicismo sintático
Não foi só o vocabulário, porém, que sofreu o impacto do assunto que tomou conta da realidade e do imaginário das pessoas. No plano da sintaxe, voltou a circular a expressão “testar positivo” (por influência do inglês), que já teve largo uso no noticiário esportivo para indicar o resultado de um exame “antidoping” a que tivesse sido submetido um atleta. Como, em português, não se diz que “alguém testou” quando foi “submetido a um teste”, tal sintaxe não é bem-aceita em textos formais, sendo considerada uma tradução malfeita ou apressada. O uso, é claro, pode vir a consolidá-la, como costuma acontecer, embora tenda a haver mais resistência à incorporação de construções sintáticas estrangeiras na língua do que à entrada de palavras novas. O tempo dirá.
As palavras do momento
Numa rápida busca no Google, até o momento em que este texto era escrito, a palavra coronavírus aparecia mais de 2,5 bilhões de vezes, e Covid-19 tinha quase 4 bilhões de registros. Esses termos já estão atrelados a um momento crítico da história da humanidade. Que, nesta batalha que ora travamos, a eles se juntem outros: solidariedade, esperança e união.