A ortografia também é gente

No Dia Internacional da Língua Portuguesa, a Folha lançou na sua página do Instagram uma espécie de enquete entre os seus seguidores, convidados a dizer qual é a sua expressão ou gíria preferida da língua portuguesa.
O resultado, como não poderia deixar de ser, foi muito divertido. Internautas de várias regiões do país contribuíram com saborosos regionalismos, como “bicho tabacudo”, que um deles afirma ser o modo de se referir a uma pessoa engraçada em Pernambuco, onde também se diz “vou chegar” quando se está prestes a ir embora de algum lugar. É de lá também – e de outros estados do Nordeste – o uso de “arrodear”, variante mais antiga de “rodear”, que significa “andar em volta de” (na pronúncia local, o “o” se aproxima do “u”, sugerindo algo como “arrudeia”, mas a grafia permanece com “o”).
Também apareceu a palavra “pavulagem”, que, segundo o dicionário “Houaiss”, é de uso típico do Amazonas, onde se alterna com “pabulagem”. O termo é usado no sentido de “fanfarrice”, ou de pessoa dada a fazer bravatas. Nesse sentido, aparentemente deriva de “pábulo”/”pávulo”, formas derivadas de um diminutivo erudito de “pavão”, o que explicaria a ideia de “gabola”, “exibido”. Vale notar que a ave dá origem também ao verbo “pavonear” (ou “pavonear-se”), de sentido semelhante.
Do mesmo leitor que enviou “pavulagem” veio “pitiú”, que, originalmente uma tartaruga do Amazonas, ganhou o sentido de “fedor”, “cheiro forte”, “odor desagradável”. Do Rio Grande do Sul foi lembrada a frase “Preteou o olho da gateada”, que é a forma gaúcha de dizer que “agora a porca torce o rabo” ou “a cobra vai fumar”.
De Minas Gerais, foi lembrado o célebre “trem”, que é marca registrada da região, além da interjeição típica dos mineiros, o igualmente célebre “uai”, que rivaliza em fama pelo país inteiro com o saboroso “oxente” do Nordeste, muitas vezes reduzido para “oxe”. As duas interjeições são formas de registrar espanto ou surpresa. “Oxente” vem de “ó gentes”, num processo fonético semelhante ao da forma “vixe” (de “vige”, Virgem Maria), que do Nordeste ganhou o sul do país com as levas migratórias que atravessaram o país. Em terras gaúchas, no entanto, para exprimir a mesma ideia, usam-se as interjeições “tchê” ou “bá” (esta também grafada “bah”), que os leitores não nos deixaram esquecer.
Houve quem se lembrasse de trazer uma expressão lusitana, que os portugueses usam quando querem se livrar de alguém que não os deixa trabalhar: “desampara-me a loja”.
Muitos dos usuários do Instagram que entraram na brincadeira lembraram ditados populares, como “Pau que nasce torto nunca se endireita”, “Diz-me com quem andas e te direi quem és”, “Cada cachorro que lamba sua caceta” [sic], “Cada um com seu cada um”, “Cada macaco no seu galho”, “Não há bela sem senão”, “O prevenido morreu de velho”, e houve um que se lembrou da frase de são Francisco de Assis, “É dando que se recebe”, cujo sentido original estimulava a troca de bens espirituais, que passou a ser usada, em sentido pejorativo, para fazer referência à troca de favores na política.
Algumas gírias muito conhecidas não poderiam deixar de aparecer. Foi o caso de “bicho”, “bacana”, “supimpa”, “fazer média” ou “falar groselha”. A palavra “meu”, frequente entre os paulistanos como forma de identificar o interlocutor em uma conversa, também foi lembrada. “Neca de pitibiriba” (ou “necas de pitibiriba”), para indicar negação enfática (“neca” é uma forma expressiva de “não”; “neca de pitibiriba” é “absolutamente nada”), e “putz grila” (ou simplesmente “putz”), que provavelmente deriva de um emprego interjetivo de “puta” (“puta que pariu!”), estiveram presentes.
Vale observar que alguns termos são fruto de nossa tendência a substituir uma palavra chula por outra que a deixe subentendida. É possivelmente a alteração eufêmica o que explica expressões como “bom para caramba” ou “bom para cachorro”, como ocorre com “paca” (no sentido de “para cacete” ou “para caralho”).
Apareceram ainda expressões que podem ser consideradas espécies de comandos pragmáticos, empregadas no diálogo: “Vá ver se eu estou na esquina!”, “Fui!”, “Eu, hein?”, “Hoje, só amanhã!”. Outras são lembranças do linguajar dos mais antigos, como “dar com os burros n’água”, “amigo da onça”, “fogo na roupa” ou “no tempo da Maria Caxuxa”.
Típicas do universo das redes sociais são as formas com grafia fonética (caso de “perereka” e “pacabá”), as hashtags, percebidas como verdadeiras palavras (por exemplo, #vaipassar, em clara alusão à pandemia de Covid-19), e termos híbridos em cuja base está o trocadilho, como “familícia”, “desMOROnando” ou “obriGADO” (seguida da figura de um boi), que dispensam explicações, além, é claro, de “bolsominion”, de sentido pejorativo (com base no inglês “minion”, “servo”, “lacaio”, “subordinado”), que é o seguidor acrítico de Jair Bolsonaro. Até mesmo um “e daí?” surgiu, em franco diálogo com o presidente da República, que recentemente usou a expressão de desdém ao comentar o fato de o Brasil já ter mais mortes decorrentes da Covid-19 que a China.
Alguns leitores levantaram questões linguísticas, como aquele que estranha um sujeito valentão, forte, brigão, com “excesso de masculinidade”, ser denominado “cabra-macho”, já que “cabra” é a fêmea do bode, e outro que traz uma explicação etimológica do significado do verbo “escafeder-se”.
Ao primeiro, vale dizer que o termo “cabra”, nessa acepção, certamente não se refere à característica de bravura do animal, mas ao fato de “cabra” denominar o “mestiço indefinido, de índio, negro ou branco, de pele escura” (segundo o dicionário “Houaiss”); o mesmo dicionário também informa ser “cabra” um “epíteto injurioso atribuído aos brasileiros pelos portugueses na época das lutas de emancipação política”).
Ao segundo, que conta a história de um padre jesuíta que, na época da catequização dos índios, fazia suas necessidades numa moita e, surpreendido por canibais, teria fugido em meio à operação, dando origem ao termo “escafeder-se” (fugir apressadamente), cabe apenas salientar que a história, embora crível, carece de comprovação. Os dicionários, por ora, atestam que o termo tem origem controversa. As etimologias populares geralmente são muito saborosas, rendem boas histórias, mas nem sempre são verdadeiras.
A palavra “saudade” surgiu várias vezes e, como se poderia esperar, acompanhada da ideia de que só a língua portuguesa consegue expressar esse sentimento. Difícil dizer isso, mas o fato é que a origem do termo também acolhe alguma dúvida. É mais provável que venha do latim solĭtas,ātis (solidão, desamparo, retiro, unidade), mas pode ter sofrido influência do árabe ‘saudâ’ (melancolia, tristeza).
Saber se biscoito é bolacha e vice-versa, velho debate do eixo Rio-São Paulo, também foi um tema trazido ao Instagram. Alguém se lembrou de evocar um dos maiores poetas da língua portuguesa, Fernando Pessoa, autor da frase “Minha pátria é a língua portuguesa”, extraída do “Livro do Desassossego”.
Foi nessa tão conhecida frase que se inspirou Caetano Veloso quando compôs “Língua”, sua grande homenagem ao nosso idioma. “Quero sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões”, entoa o músico brasileiro, fazendo reverberar toda a tradição da língua, que nos une numa mesma história.
Finalmente, alguém sugeriu ao “nosso brilhante gestor educacional” (@abrahamweintraub) que este lhe seria um dia propício para uma reflexão. Como diria Fernando Pessoa: “Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida”.
Vida longa à língua portuguesa! Cabe a nós, que nela aprendemos a amar e a sonhar, zelar por ela. A melhor maneira de fazer isso é usá-la sempre e muito, em toda a sua potencialidade.