O mistério da grafia de ‘intubação’

Em meio ao noticiário da pandemia, tem sido recorrente uma questão de ortografia que talvez em outro momento passasse despercebida. Ganha frequência e importância o uso dos termos “intubar” e “intubação”, cujo “i” inicial parece um enigma para alguns leitores. Por que não “entubar” e “entubação”?

É possível que muita gente associe o prefixo “i(n/m/r)-” apenas à ideia de negação (legal/ ilegal, feliz/ infeliz, provável/ improvável, real/ irreal etc.). Ocorre, porém, que o prefixo “i(n/m)-”, entre outros sentidos, também pode indicar movimento para dentro, caso em que se opõe ao prefixo “e(x)-”, como atestam, por exemplo, os seguintes pares opositivos: interno/ externo, importar/ exportar, imigrar/ emigrar, imergir/ emergir, incluir/ excluir, inclusivo/ exclusivo, inspirar/ expirar, intubar/ extubar, intubação/ extubação.

Em resumo, usa-se o prefixo “i-” com dois sentidos, o de negação (útil/ inútil, legível/ ilegível) e o diretivo, cuja origem está no advérbio-preposição do latim “in”.  Este último tem o sentido básico de “entrada”, ou seja, de movimento para dentro (inserir), que pode ser ampliado para o de aproximação (inerente), de hostilidade, esta entendida como um tipo de aproximação (insurgir), ou mesmo para o de avesso, tipo específico de movimento para dentro (inverter), e ainda para o de mudança de estado (intumescer).

Esse segundo “in-”, denotador de movimento para dentro, está na origem da variante popular “en-”, que nos dá um grande número de termos, entre os quais o próprio verbo “entrar” (do latim “intrare”). É também essa variante a que mais aparece nas formações que indicam mudança de estado (entardecer, envelhecer, enfastiar-se, endividar-se, ensandecer) – diga-se, aliás, uma formação com grande fertilidade na língua hoje, capaz de gerar neologismos.

Quem chegou até aqui já observou que o par in-/en-, pelo menos em alguns casos, sugere a oposição erudito/ popular. É por isso que certos termos iniciados por “in-”, calcados na forma latina, não têm o sentido tão claro para o falante do português.

No âmbito da medicina, a tendência é optar pelas formas eruditas (infarto/ infartar em vez de enfarte/ enfartar; intubar/ intubação em vez de entubar/ entubação). Vale lembrar que o latim é a principal fonte da nomenclatura científica internacional.

Existem, em português, com direito a registro em dicionários, as formas “entubar” e “entubação”, que são variantes populares de “intubar” e “intubação”. Ocorre, porém, que as grafias com “e-” inicial apresentam outros significados para além do sentido médico de introduzir tubo na traqueia para criar uma passagem de ar.

“Entubar” também quer dizer “dar formato de tubo” (Ele entubou a folha de papel), “entrar no tubo e nele surfar” (O surfista vai entubar aquela onda?) e ainda, na condição de tabuísmo, “manter coito anal”.

Em inglês, o termo é “intubation”; em italiano, é “intubazione”; em espanhol, “intubación”; em francês, “intubation”; em holandês, é “intubatie”; em romeno, “intubatie”; em dinamarquês, “intubation”; em alemão, “intubation”. Enfim, todos remetem ao latim.

Dicionários como “Houaiss” e “Priberam” admitem as duas grafias (intubação e entubação), “Aulete” (em versão eletrônica) revisou seu verbete original “intubação” e passou a admitir “entubação”. “Aurélio”, em sua quinta edição, distingue “entubar” (dar feição de tubo a) de “intubar” (Med. introduzir cânula na traqueia de), não admitindo, como se vê, a forma “entubar” no sentido médico.

Essa oposição, que o “Aurélio” reforça, é a mesma que se mantém no par incubar/ encubar. “Incubar” é chocar (incubar ovos) ou possuir em estado latente (incubar vírus, incubar ideias); “encubar” é “recolher em cuba” (encubar o vinho). Quanto a esses termos, os dicionários estão todos de acordo: “incubar” é uma coisa e “encubar” é outra.

Quanto a “impostar” e “empostar”, esta segunda já se fixou como variante da primeira, que é idêntica à grafia italiana (impostar a voz). “Intitular” continua com “i”, sem variante reconhecida em dicionários.

Vemos, portanto, que, em alguns casos, “in-” e “en/m-” são apenas variantes, que sinalizam uso erudito ou popular, mas, em outros, levam a termos de diferentes significados. A escolha de “intubação” pela Folha reflete a escolha feita no âmbito da medicina.

PS. As aspas simples (no lugar das aspas duplas) do título são empregadas por razões técnicas, alheias à vontade da autora. Sabemos que esse não é o uso correto em língua portuguesa, mas assim o fazemos para que o texto não perca a configuração em determinados dispositivos. Agradecemos a compreensão.