Balbúrdia no Planalto
O recém-divulgado vídeo da reunião ministerial de 22 de abril de 2020 causou grande frenesi por causa da linguagem do presidente da República. Houve canal de televisão quantificando o número de palavrões registrados na sessão e edições de vídeo na internet reunindo os “melhores momentos”.
Não há como negar que a falta de decoro é moeda corrente entre o presidente e seus ministros, que não se furtaram a manter numa reunião ministerial o linguajar que tanto sucesso faz nas redes sociais. É preciso lembrar, no entanto, que foi com esse tipo de registro linguístico que o presidente se elegeu. Surpreendente seria que, longe dos holofotes, ele demonstrasse um comedimento que nunca ostentou em público. Em geral, dá-se o inverso.
Havia grande expectativa em torno da suspensão do sigilo do vídeo, o que, pelo menos em parte, se explica pela natural curiosidade de saber como se comportam a portas fechadas as personalidades que conhecemos por sua imagem pública. Supõe-se que esta seja mais edulcorada do que aquela que ninguém vê; a imagem pública tende a ser construída para produzir um efeito, enquanto na intimidade, atrás das cortinas, estaria a “verdade”.
Bolsonaro, ao se expressar com a mesma agressividade de sempre, dando vazão a um repertório de imagens escatológicas (cocô, bosta, estrume, hemorroida, porcaria) e de termos de baixo calão (foda-se, foder, sacanagem), ganhou pontos entre os seus apoiadores, que nele apreciam a “espontaneidade”.
Vale dizer que, nas redes sociais, a regra do sucesso passa por uma imagem de autenticidade (construída ou não) e de coragem de ser o que se é. Desse ponto de vista, pode soar como hipocrisia escandalizar-se com o uso de palavrões que fazem parte do glossário cotidiano das pessoas. É claro que não se deveria fazer uso dessa linguagem dentro da sede do governo, em reunião ministerial gravada, mas como esperar de um governo que elegeu o Twitter como veículo de comunicação o respeito ao protocolo?
O verbo “foder”, por exemplo, conquanto seja de uso tabuístico, vem sendo ressignificado, como o atesta a quantidade de livros que o adotam desde o título (A Sutil Arte de Ligar o Foda-se; Liberdade, Felicidade e Foda-se; Fodeu Geral; Seja Foda, Seja Inteligente; Como ser uma Pessoa Foda; Como ser uma Mãe Foda etc.). O curioso desse termo e suas variações é que seu campo semântico é muito abrangente (e os falantes saberão distinguir o significado de “foda”, “fodinha” e “fodão”, por exemplo).
“Foda-se”, como conselho de autoajuda espiritual, equivale a “dane-se”, “estou pouco me lixando para o que os outros pensam de mim”. A escolha de um termo chulo como forma de nomear um processo de autolibertação e de enfrentamento de conflitos tem algo de catártico, uma vez que soltar um palavrão é quebrar um protocolo da vida social.
Diga-se, aliás, que a sinceridade é inimiga da etiqueta. Pessoas educadas aprendem desde cedo a lição do comedimento (comer pouco, em ritmo moderado; fazer gestos suaves, mas sem afetação; falar baixo; vestir-se com discrição etc.). Vale dizer que Bolsonaro, antes do primeiro palavrão da reunião, pede licença, desculpando-se por antecipação. Além disso, em mais de uma vez, refletindo sobre sua própria linguagem, afirma ser mais educado que o ministro Weintraub, o que, embora difícil de aferir, pode ser verdade.
(Ficamos a imaginar como têm sido todas as outras reuniões do ministério de Jair Bolsonaro, das quais a dos 520 anos da chegada de Cabral à Terra de Vera Cruz parece ter sido apenas uma pequena amostra.)
Assim como os educados usam eufemismos para tentar dar más notícias de modo agradável, os “espontâneos” podem usar os disfemismos para produzir o efeito inverso: dizer de modo desagradável e grosseiro o que quer que seja (assinar a porcaria do papel, o bosta do governador fulano, o estrume do governador beltrano, cocô petrificado etc.). Até quando usa uma figura de linguagem, a metonímia, para evitar dizer certa palavrinha chula, o presidente cai no disfemismo. Afinal, hemorroida, obviamente, não é um palavrão, mas, no contexto, seu emprego é chulo.
A obscenidade se define por ser algo que se deve evitar ou esconder, que não deve ser dito em público, geralmente em nome da decência e do decoro. O presidente que dava “banana” aos jornalistas e que divulgou vídeo de “golden shower” nunca pareceu preocupado com vulgaridade ou falta de pudor.
Por outro lado, o anseio de quem olha pelo buraco da fechadura foi satisfeito pelo ministro do Meio Ambiente, com sua proposta de aproveitar a pandemia, enquanto a imprensa está ocupada com os efeitos devastadores da doença que se alastra, para “passar a boiada”, alterando, na calada da noite, portarias e decretos que não passam pelo Congresso (ditos infralegais). Essa aparentemente foi a maior obscenidade da reunião, mas não foi a única.
O subtexto do encontro era a preocupação com o impeachment. O general Braga Netto tentou apresentar o seu Pró-Brasil, um plano de investimento pelo Estado, que ele foi chamando de Plano Marshall brasileiro, para logo ser enquadrado por Paulo Guedes, a quem coube fazer a correção e, em seguida, advertir a audiência de que o desenvolvimentismo quebrou o Brasil etc. e que, se fosse por esse caminho, o governo acabaria como o de Dilma Rousseff. O ministro da Economia acrescentou que esse discurso de desigualdade pode até ser usado porque o presidente precisa se reeleger, mas que está descartada qualquer alteração na sua cartilha neoliberal. Admite, portanto, que “discurso da desigualdade” pode ser necessário para angariar votos, ainda que a redução da pobreza não esteja nos planos do governo.
Mais adiante, depois de o ministro do Turismo fazer sua defesa dos cassinos, coisa que desencadeou indisfarçável excitação na turma, Guedes rendeu-se ao tom geral e, ignorando a presença e/ou a opinião da ministra da moral e dos bons costumes, disparou: “Cada um que se foda como quiser, principalmente se for maior de idade, vacinado e milionário”, deixando bem claro a que deus oferece devoção.
A intervenção de Weintraub serviu para lembrar ao chefe que ele é um leal militante do projeto deles, seja este qual for. Parece estar, indiretamente, lamentando o fato de sua pasta estar na mira do centrão, como moeda de troca para evitar o impeachment. A fala desastrada e grosseira, em que afirmou que os ministros do STF, a quem chamou de “vagabundos”, deveriam ser presos, pode render-lhe um processo na Justiça.
Por ora, o ministro Celso de Mello, em texto da decisão que suspende o sigilo do vídeo, reforça até pelo nível de linguagem que o ministro vai ter de prestar contas daquilo que disse: “Essa gravíssima aleivosia perpetrada por referido Ministro de Estado, consubstanciada em discurso contumelioso e aparentemente ofensivo ao patrimônio moral dos Ministros da Suprema Corte brasileira (“Eu, por mim, botava esses vagabundos todos na cadeia. Começando no STF”) – externada em plena reunião governamental ocorrida no próprio Palácio do Planalto, que contou com a presença de inúmeros participantes –, põe em evidência, além do seu destacado grau de incivilidade e de inaceitável grosseria, que tal afirmação configuraria possível delito contra a honra (como o crime de injúria)”.
Damares Alves, com sua contumaz beligerância, demonstrou preocupação com a possibilidade de mulheres feministas virem a reivindicar o direito ao aborto por terem sido vítimas do coronavírus, como fizeram em relação ao zikavírus, que, sabidamente, pode provocar microcefalia no feto caso a gestante o contraia. A preocupação da ministra no momento da pandemia é que as feministas vão encontrar mais uma desculpa para defender o direito ao aborto.
Saber se o vídeo constitui ou não prova de que Bolsonaro queria interferir na Polícia Federal é tema para os juízes. O que fica claro é que o presidente teme ser traído por seu próprio gabinete e faz questão de lembrar os partícipes de que não seriam ministros em outro governo. Verdade. Chega a dizer, em claro recado a Sergio Moro, que perde o ministério o ministro que for elogiado pela Folha, pelo Globo… e pelo Antagonista. Mandetta que o diga.
Bolsonaro passou 30 anos no baixo clero, sem ser incomodado. Parece ter saudade do sossego, de quando ele e a família estavam longe dos holofotes, quando pequenos negócios, “rachadinhas”, quiçá relações mal explicadas com milícias, passavam despercebidos da imprensa, que tinha mais com que se preocupar. No seu entender, investigar seus filhos seria só uma forma de atingi-lo e apeá-lo do poder. Chega a dizer que não tem nenhum apego pela cadeira de presidente, afirmação interessante nas circunstâncias.
De qualquer forma, o estilo chulo (ou “sincero”), embora envergonhe a (alta) classe média, foi capaz de carrear os votos das classes mais baixas, contingente numeroso de pessoas. Se tudo o que ele dizia antes da eleição não foi suficiente para acender o sinal de alerta, os palavrões, neste momento, parecem ser o de menos.