Educação deve ser antídoto a discurso de ódio
Não há dúvida de que tudo o que atenta contra a liberdade de expressão merece repúdio. Pelo menos em bases racionais, ninguém se atreve a defender o contrário. Essa situação aparentemente cria uma cilada para os defensores da democracia quando postos diante da circulação do discurso de defesa do fim da própria democracia, que aparece de variadas formas, como apologia de racismo ou homofobia e incitação à perseguição de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), entre outras.
Se sou democrata, estou obrigado a defender o direito de qualquer pessoa a dizer qualquer coisa –e, por certo, discursos racistas ou totalitaristas padecerão de graves defeitos de argumentação, o que, em si os levará para o lixo da história. Embora seja lógico, esse raciocínio pode ser um tanto simplista, pois pressupõe um embate racional de ideias, com disputa de argumentos, ou seja, um gênero específico de produção discursiva.
Ocorre, porém, que os defensores de preconceito, ditadura, fechamento de Congresso, perseguição de ministros, lançamento de bombas no STF e coisas do gênero não estão escrevendo textos argumentativos com vistas a contribuir para o debate de ideias.
Em suma, importa não apenas o que se diz mas quem diz, como diz, em que circunstâncias diz, em que lugar diz, com que intenção diz (vale rever a teoria dos atos de fala de Austin, revista por John Searle). É por isso que uma frase como “Perdeu, madame”, para efetivamente ser uma ameaça e levar a uma ação específica (entrega dos pertences), requer certo agente e circunstâncias. Se ditas por um assaltante munido de uma arma, as palavras levam à ação; se ditas numa brincadeira entre amigos, por exemplo, podem provocar o riso.
É preciso, portanto, trazer para essa discussão outros fatores que convergem para o significado do que se diz e, sobretudo, a análise da intenção de quem fala e dos elementos do discurso capazes de induzir ações. O que se convencionou chamar de “discurso de ódio”, por exemplo, deixa claro que o que está em jogo são emoções, não razão ou argumentação lógica. Pode-se dizer que esse tipo de discurso constitui um gênero textual. Ao pôr em circulação certos afetos, instiga mais e mais o ódio e, como consequência, desencadeia ações potencialmente criminosas. É razoável, por complexo que seja, buscar formas de responsabilizar os disseminadores desse tipo de discurso, que, ao que tudo indica, não se combate apenas com argumentos lógicos.
Há dois anos, no calor da campanha política que levaria o clã Bolsonaro ao poder, o Enem teve de alterar um de seus critérios de correção de redações por iniciativa de um certo movimento intitulado Escola sem Partido. Até então, o participante que defendesse no texto ideias que afrontassem a Declaração Universal dos Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário, teria sua redação eliminada.
Não faltaram acusações de que a prova desrespeitava o princípio da liberdade de expressão, e muita gente entrou no debate para defender o direito que tinham os estudantes de manifestar seu racismo e outros eventuais preconceitos num exame nacional que equivale a um vestibular para as universidades públicas. O presidente, depois de eleito, chegou a dizer que analisaria, ele próprio, as questões da prova.
De lá para cá, o cenário piorou muito. Aquela foi uma falsa discussão, pois a liberdade de expressão não estava ameaçada. A Declaração Universal dos Direitos Humanos resolve o paradoxo ao enunciar que seus signatários se comprometem a seguir todos os seus preceitos, entre os quais está o da liberdade de expressão, não apenas um ou outro item da cesta. Em suma, quando põe em risco a liberdade como um todo ou contradiz os demais artigos do documento, a liberdade de expressão deixa de ser considerada como tal.
A antiga regra do Enem estimulava os professores a fazer o debate de ideias com os alunos à luz dos direitos humanos, que hoje andam tão fora de moda. O exame continua pedindo aos participantes que respeitem esses princípios, mas mudou o critério de pontuação, deixando de anular os textos que desobedecem a essa instrução. Independentemente de quantos fossem os estudantes que desejassem manifestar esse tipo de ideia, o que chamou a atenção na ocasião foi o aspecto simbólico da reivindicação, que, apoiada por pais de alunos, acabou sendo atendida.
O problema é estarem os jovens à mercê das redes sociais, onde nem sempre há espaço (ou tempo) para refletir sobre as questões. O ritmo de escrita e leitura, bem como o tipo de comentário e o catálogo de emoções (emojis), são dados pela plataforma. O único critério de validação de uma ideia é o quantitativo (quantidade de likes, de seguidores etc.), que, como se sabe, é frágil, pois a quantidade pode ser produzida artificialmente por robôs e algoritmos.
Uma publicação, por mais absurda que seja, se for chancelada por milhares ou milhões de likes, tenderá a produzir mais adesão. Nesse ambiente, cuja lógica é a da publicidade, prevalece o discurso da emoção, seja ela qual for. Quem “lacra” nas redes sociais, muitas vezes, é quem diz uma frase de efeito, não raro uma grosseria –e, quando menos esperamos, estamos todos discutindo as piadinhas sexistas de Eduardo Bolsonaro ou as manifestações racistas de uma youtuber qualquer.
O pior de tudo é que a educação, que seria a melhor arma para levar as pessoas a distinguir o joio do trigo, o fake do verdadeiro, o fato da mentira, o ódio da razão, vem sendo destruída. A depender do sr. Paulo Guedes, deveríamos resgatar do baú da ditadura a disciplina escolar OSPB (organização social e política do Brasil). O sr. Weintraub, finalmente, deixa o ministério, mas não sentimos alívio, pois, nesse governo, tudo sempre pode piorar, mesmo que pensar em algo pior seja um grande desafio à nossa imaginação.