O fígado e o cérebro
Na recente polêmica desencadeada por um texto de Hélio Schwartsman, intitulado “Por que torço para que Bolsonaro morra”, entre os muitos pitos que o autor levou de seus colegas articulistas, chama a atenção o de um deles, que o acusa de ter “argumentado com as vísceras”, nas quais, ninguém duvida, estariam entranhados nossos piores sentimentos.
Aparentemente, as vísceras – coração, útero, estômago, pâncreas, intestinos, fígado – são sede dos nossos mais censuráveis e mórbidos desejos. Geralmente se atribui ao fígado o sentimento de vingança (um sujeito “de maus fígados” é vingativo, genioso), embora o termo também seja um sinônimo de índole, bravura ou intrepidez (aquele sujeito “tem fígado”).
Não parece ser, no entanto, desse sentido figurado do “fígado” que deriva o adjetivo “figadal”, usado na expressão “inimigo figadal”, cuja origem, salvo engano, estaria nos duelos entre espadachins. Para ferir de morte o inimigo, era preciso mirar no seu fígado. Essa história, se verdadeira, parece fazer mais justiça ao fígado, que, enfim, não seria um mero produtor de ódio, maldade ou argumentos ruins, mas um ponto fraco, cujo ferimento pode levar à morte. De qualquer forma, o fígado, talvez por secretar a bile, substância amarga e escura, ganhou a conotação negativa e é frequentemente associado ao mau humor.
O texto de Schwartsman, no entanto, nada tem a ver com essas misteriosas entranhas malignas, embora, como se viu, tenha ferido a suscetibilidade de vários articulistas do jornal, muito preocupados em deixar claro que têm incontestes virtudes morais. O que faz o colunista é um exercício de raciocínio, que, aliás, vem explicado por meio da expressão “nada pessoal”, logo no primeiro parágrafo. O autor escreveu com o cérebro mesmo, gostemos ou não de seus argumentos e da corrente filosófica em que se engajam. Nada existe nas suas palavras que sugira ódio ou mesmo real desejo de ver a morte de outrem. Para quem “não entendeu a piada”, como se diz, ou fingiu que não entendeu, ele escreveu dias depois o texto “Esperando o japonês da Federal”.
Enquadrar o autor na malfadada Lei de Segurança Nacional por causa de um exercício filosófico não parece sequer imaginável à luz da razão (a menos que o texto legal sofra algumas alterações, como as arroladas por Claudia Tajes em sua divertida coluna no caderno Ilustrada), menos ainda se considerarmos o histórico do ofendido, cujas manifestações públicas são assustadoramente amorais (ou será que todo o mundo já se esqueceu do “e daí?” diante do aumento do número de casos de Covid-19, da indiferença ante a morte da população e de toda a escatologia que, aliás, o transformou em “mito” nas redes sociais e fenômeno eleitoral?).
Nem que desejasse, Schwartsman conseguiria a proeza de igualar-se ao dito-cujo na produção de discursos de ódio –ao que tudo indica, pertencentes a outro gênero, que não o filosófico. Se cometeu algum erro, talvez tenha sido a escolha do título do texto, considerado o lamentável fato de que muita gente não vai além dele, como comenta uma leitora, que, cristã, reconhece que seu incômodo ante o título se desfez depois da leitura do texto.
De resto, ao que parece, faltou interpretação de texto e sobraram manifestações de moralismo e bom-mocismo, algumas das quais bem dramáticas, o que nos faz pensar que o fígado, se é verdade que produz argumentos ruins, também pode produzir leituras equivocadas.