Novos códigos
Aqui costumo tratar de questões relativas à língua portuguesa, mas não me parece fora de propósito dispensar alguns parágrafos a uma linguagem não verbal por meio da qual nos reconhecemos e nos comunicamos nestes tristes tempos de convívio com a ameaça invisível de um vírus.
O principal item desse novo código é a máscara de proteção, que a um só tempo nos protege dos perdigotos alheios e livra os outros do contato com os nossos. Sua função parece clara, visto que o vírus se transmite pelas vias aéreas. Devemos, então, cobrir a boca e o nariz, portas de entrada e de saída do vírus.
A esta altura, depois de um ano de apelo e de explicações acerca da utilidade do acessório, convertido em peça do vestuário, com direito a estampas variadas, parece claro que quem se recusa a usá-lo não age por ignorar a sua função. A recusa de usá-lo ecoa a negação seja da gravidade da doença, seja dos métodos de combater o contágio, acrescida de uma pitada de pensamento mágico.
A imprensa noticiou as festas de fim de ano e aglomerações que ocorreram em todo o país em plena pandemia. Por óbvio, quem caiu na farra dispensou a máscara. Alguém imaginaria essas mesmas festas com pessoas mascaradas? Os adeptos da máscara preferiram adiar as comemorações para momentos mais oportunos.
Usar ou não a máscara passou a ser um código de conduta de viés ideológico, como tudo desde que a fanfarronice se instaurou no governo federal, que, em vez de se empenhar em campanhas educativas, compra de vacinas, testagem da população, organização do combate à pandemia, prefere investir no caos e na negação. Que dizer de um presidente da República que insiste no mau exemplo e faz piada com a preocupação das pessoas com a própria vida e a dos demais?
O presidente aparece publicamente sem máscara e abraça eleitores, que o imitam. Seus ministros e/ou secretários concedem entrevista coletiva à imprensa em que tiram a máscara a cada vez que respondem a uma pergunta dos jornalistas, sendo que ao falar é que se emitem os perdigotos…
Não estranhemos, portanto, pessoas que arregaçam a máscara ao pescoço para falar ao telefone e até mesmo para soltar um espirro em público. Muitos fazem o mesmo gesto enquanto praticam esportes nas praças, caminham pelas ruas ou quando vão aos bares e restaurantes com os amigos.
Nos locais em que o uso da máscara é obrigatório, geralmente se pendura um cartaz com as instruções de colocação do acessório, mas quem lê cartazes? Salões de cabeleireiro são um problema: o ambiente de harmonia, de encontro com os amigos, que é tão típico desses locais, cria um grande embaraço para os funcionários diante dos clientes que não respeitam as regras — os que as respeitam e os que não as respeitam estão ali, juntos e pagantes, numa guerra silenciosa. Uma boa quantidade de pessoas deixa o nariz de fora; outras penduram o pano na orelha… Para que usam, então?
Parece que se trata mais de um código de conduta que de real convicção na capacidade de proteção do acessório. Uma pessoa sem máscara vê outra com máscara nas áreas comuns do condomínio e pode vestir a sua em respeito à crença do vizinho – ou para evitar algum constrangimento maior.
É muito desagradável usar essas máscaras; de resto, ninguém fica bonito atrás delas. Se as usamos, é porque é necessário. Se o tecido serve de anteparo a um ser invisível, não devemos puxar e recolocar a máscara que pode estar contaminada, pois corremos o risco de facilitar a entrada do vírus em nosso próprio organismo. Não é óbvio?
Estranhos tempos estes em que os símbolos parecem anteceder a materialidade das coisas. O gesto de usar a máscara é mais motivado pelo seu aspecto simbólico de pertencer a um grupo de pessoas conscientes (ou pelo incômodo de discutir com algum membro desse grupo) do que por sua utilidade comezinha, que só se configura no uso correto e higiênico. Como explicar a máscara no pescoço, na orelha, abaixo do nariz ou sendo puxada, tirada e recolocada como se fosse casaquinho de frio? Resta-lhe apenas o traço simbólico, ainda que vago.
Que em 2021, mesmo atrás das máscaras, possamos viver alegrias. Não custa lembrar: a vida é uma só.