Vacinados

Aos trancos e barrancos, claudicante, vem começando a vacinação contra a Covid-19 no Brasil. Depois de uma longa sessão da Anvisa, que acompanhamos pela TV, ouvindo os longos votos de cada integrante da diretoria da agência, como ouvíamos em outros tempos as intermináveis peças de oratória dos ministros do STF, as vacinas são aprovadas, a fotografia oficial é tirada e, por um instante, respiramos aliviados.

No dia seguinte, a realidade: o lote de vacinas disponíveis é muito pequeno e ainda há inúmeros entraves à imunização da população como um todo. Ainda que não faltassem doses, seria necessário estabelecer uma ordem, uma vez que seria impossível vacinar a população inteira em um dia só.

O critério de prioridade já estava, portanto, definido: profissionais de saúde da linha de frente, em razão do contato constante e direto com pacientes infectados, e o grupo de idosos, indígenas, quilombolas e populações ribeirinhas, em razão de maior fragilidade. A regra parecia razoável, mas não resistiu nem por dois dias.

Os fura-filas, em geral beneficiados pelo corporativismo ou por relações de amizade e compadrio, nem se deram conta de que exibir nas redes sociais o seu atestado de vacinação não lhes atrairia simpatia ou admiração. Que significa ser um “vacinado”? Significa que vai poder abandonar a máscara de proteção, voltar a conviver com seus amigos e parentes, frequentar festas, voltar à vida normal sem medo?

Qual é, de fato, a vantagem de ser um dos poucos vacinados? Na lógica das redes sociais, produz o efeito de provocar a inveja alheia, o mesmo que se obtém divulgando viagens exóticas, férias espetaculares, família feliz, presença em festas badaladas ou restaurantes caros e quejandos, mas, na prática, não há vantagem alguma nessa exclusividade.

É fato que, sob a influência constante do maketing, estamos acostumados a identificar o que é bom com o que é exclusivo, ou seja, com aquilo que exclui os outros, que é supostamente só nosso e, portanto, faz de nós únicos, indivíduos melhores que os outros. A volta da “vida normal”, porém, depende da vacinação do conjunto da sociedade, portanto de um programa inclusivo de vacinação – e da real eficácia da vacina.

Diante da óbvia reação negativa da maior parte das pessoas aos fura-filas, vêm as explicações (eu vou fazer 60 no mês que vem; eu tenho sinusite; eu trabalho no setor administrativo do hospital e posso ter contato eventual com parente de paciente de Covid etc.). Todos estamos expostos ao risco e todos temos o direito à vacina. O problema é respeitar a prioridade, que é a primazia, a possibilidade legal de passar à frente dos outros. Podem-se questionar os critérios de prioridade, é claro, mas não é isso o que se vê. Salve-se quem puder!

Um grupo de grandes empresários também tenta furar a fila. Com dinheiro para comprar as doses por um valor muito mais alto que o contratado pelo governo, eles põem a vacina numa espécie de leilão. Sua justificativa não difere muito da dos outros fura-filas, pois argumentam que a elevação do número de vacinados, independentemente dos critérios de prioridade do Ministério da Saúde, seria em si benéfica.

Por óbvio, esse argumento pode servir para qualquer furador de fila. Acrescentam que doariam ao governo (para distribuição à população) a metade das doses adquiridas (de um total de 33 milhões, doariam 16,5 milhões). Os critérios de distribuição passam a ser os de quem está pagando, o que, na lógica de mercado, também está justificado. Quem pode mais chora menos, afinal.

Na prática, porém, o problema persiste, pois, salvo engano, tendo a vacina eficácia de pouco mais de 50%, seu efeito depende da vacinação em larga escala (e da aplicação das duas doses), o que é um processo – e vai ser preciso ter paciência.

Em suma, pertencer à minoria dos vacinados talvez produza um efeito mais simbólico que real. A proteção, de fato, virá quando pertencermos a uma maioria de vacinados.