Folha: 100 anos de língua portuguesa
A ideia de compilar as palavras e expressões que vieram ao mundo nas páginas da Folha nos últimos 100 anos era espetacular, mas carecia de um tipo de pesquisa muito difícil de fazer, sobretudo em pouco tempo.
Restava apelar para a memória e conversar com alguns dos articulistas que fizeram história no jornal para relembrar palavras e expressões que marcaram o seu tempo. Assim foi feita a reportagem de Marcella Franco, publicada hoje no Caderno Especial.
Era de esperar que os inventores de palavras atuassem, principalmente, nos cadernos culturais – e assim se chegou a Joyce Pascowitch, Erica Palomino e José Simão.
Aos muito jovens pode parecer estranho o termo “dasluzette”, criação de Joyce, mas foi esse o apelido dado pela colunista a quem frequentava assiduamente a loja Daslu, templo do luxo paulistano, que teve suas portas fechadas em 2016. Na pena de Joyce, a terminação “-ette” renderia mais duas palavrinhas: “culturette” e “milionette”. A duplicação do “tt”, à moda francesa, garantia o discreto charme da elite frequentadora de museus no exterior e endinheirada o suficiente para colecionar obras de arte em casa.
De modo geral, o sufixo “-ete” é apropriado para mesclar o “modernoso” com o “picaresco”: “chacrete” e “periguete” que o digam e, mais recentemente, nas páginas da Folha, “bolsonarete” (“Bolsonaro e bolsonaretes de coturno explicaram para o cidadão de bem que o povo armado não será escravizado”).
Joyce Pascowitch chamava homem bonito de “lasanha”, talvez renovando uma velha tradição de associar a beleza masculina a uma iguaria largamente apreciada. Os mais velhos se lembrarão de que já foi muito comum dizer que um galã de novela era um “pão”.
Filho de presidente era primeiro-filho, genro de presidente era primeiro-genro, sempre seguindo à risca o modelo de “primeira-dama” – e não é que hoje já se fala em primeiro-cavalheiro? Sendo a mulher a presidente (ou presidenta, como queiram), parece natural que assim se chame o seu marido. Será?
“Montar”, na gíria gay costuma ser usado pelas drag queens depois de vestidas e maquiadas. Erica Palomino não hesitou em ampliar esse uso para quem quer que carregasse demais na maquiagem. Numa época em que o jornalismo era um pouco mais sisudo do que hoje, a Folha foi pioneira na reverberação do vocabulário do universo LGBT, que aparecia nos textos da colunista. O fato de estar nas páginas do jornal dava à palavra um novo status, rumo à dicionarização. O verbo “montar”, nesse sentido, está registrado no “Houaiss”.
Embora em geral seja muito difícil, às vezes é possível saber quem inventou uma palavra São raríssimos os casos em que o criador é conhecido e, mesmo nesses, é vã a sua glória, já que a palavra vai seguir trajetória própria e a coletividade é que dirá o que dela será feito.
Alguns leitores se lembrarão de que, nos anos 1990, o ministro Rogério Magri, do governo Collor, cunhou o adjetivo “imexível”, que, à primeira vista, soou “errado” – e pudemos ver que não só de médico e de louco, mas também de professor de português, todo o mundo tem um pouco. Em toda a imprensa, viram-se críticas à falta de vocabulário do ministro, que era dado a certas criatividades, como a de dizer que sua cadela era um ser humano. Pouco tempo depois, o dicionário “Houaiss” acolheria o termo como, afinal, um sinônimo de “inalterável” – e poria fim à discussão.
Daí em diante, o termo foi aparecendo de maneira jocosa na pena de alguns colunistas, que, de início, zelavam pelo uso das aspas, não raro atribuindo-lhe a autoria, e, com o tempo, foram despindo a palavra do adereço, bem como da referência ao seu “autor” (“Apesar de acenos a diálogo, Lira disse que a decisão da mesa está tomada e que nenhum lugar era imexível“).
A Folha não foi o primeiro veículo a dar espaço para o “imexível”, mas foi, na década anterior, aquele que no qual estreou a palavra “papamóvel”, cujo primeiro registro impresso, segundo o próprio “Houaiss”, data de 19 de junho de 1980. A palavra veio à luz em uma reportagem sobre os preparativos para a primeira visita do papa João Paulo 2º ao Brasil, em que aparece entre aspas, mencionada como o termo que estava sendo usado para descrever o veículo que o transportaria. Vale assinalar que a datação de uma palavra está ligada ao seu registro verificável mais antigo e que, por isso mesmo, caso surjam novas pesquisas, o termo pode ser retrodatado.
Se é bem verdade que as palavras não costumam carregar carteira de identidade, há casos em que algumas expressões ganham sentido particular na voz de alguém. É por isso que apresentadores de televisão costumam criar bordões.
Na mídia impressa, nas páginas da Folha, foi o colunista José Simão, o “Macaco Simão”, quem transportou para o papel esse traço tão típico da oralidade. Assumindo um apelido de infância dado pelos coleguinhas de escola (em alusão a um personagem de revista infantil que, como ele, se chamava Simão), criou o célebre “Macaco Simão! Emergência!”, que dá início às colunas quando a notícia é bombástica. De resto, todos os textos começam com o indefectível “Buemba! Buemba!” e terminam com o impagável “Nóis sofre, mas nóis goza”, que, desde a grafia, imita a pronúncia do paulistano, além de suprimir a concordância verbal, como se faz na linguagem informal, e de acionar, com a picardia de sempre, o duplo sentido da palavra “gozar”. Com isso, Simão ganha a cumplicidade do leitor.
Há termos, no entanto, que, longe das colunas de humor, foram inventados por articulistas e passaram a fazer parte de um repertório próprio desse autor. Quem, ao ouvir a palavra “privataria” (registrada no “Houaiss”), não se lembra de Élio Gaspari ou, ao ouvir o tal “petralha” (registrado no dicionário de Sacconi), não se lembra de Reinaldo Azevedo? Esta última, é verdade, foi muito mais amplificada na internet que nas páginas da Folha e hoje parece trazer ao criador menos orgulho que em outros tempos.
O hábito de fazer jogos de palavras, no entanto, é mais comum do que parece e faz parte do dia a dia da Folha. O articulista Conrado Hübner Mendes recentemente cunhou “magistocracia” (“Entre os obstáculos que emperram o Estado de Direito no Brasil, a hegemonia da magistocracia no sistema de justiça é dos mais ignorados”) e Vinicius Torres Freire, useiro e vezeiro em jogar com as palavras, já chamou o general Pazzuello de general Pesadello, rivalizando com Zé Simão, que, outro mestre na arte do chiste (espécie de dito espirituoso por meio do qual um conteúdo crítico se reveste de uma forma cômica), batizou de general Pazuerro o mesmo personagem.
A técnicas de alterar o corpo da palavra, não raro de juntar dois nomes para criar um conceito, como o Datapadaria de Simão, em que faz jocosa alusão ao Datafolha, estão na base nos ditos chistosos, que vão além dos simples trocadilhos. Estes, a bem da verdade, também são muito saborosos e, como nos lembra Paulo Rônai, estão disseminados pela literatura, desafiando o ofício do tradutor, uma vez que é muito difícil transpor de uma língua para outra um conteúdo que está conjugado com uma forma específica.
São os trocadilhos que garantem o riso do leitor ante as histórias dos “predestinados”, que são traquinagens do Macaco Simão baseadas em nomes próprios reais de pessoas, como o do delegado linha-dura chamado Themildo das Trevas, o da funcionária da Italac Laticínios chamada Cláudia Leite ou o do escritório de advocacia Katia Regina Murro e José Carlos Pacífico, o Murro e Pacífico (“Direto de Osasco, o escritório de advocacia Katia Regina Murro e José Carlos Pacífico! (“Duas opções! Eu prefiro no MURRO!”). Sem encerrar nenhum tipo de crítica, apenas divertem.
Também não foi à toa que se intitulou “esculhambador-geral da República”. A matéria-prima de seus textos é o noticiário; é lá, nas outras páginas da Folha, que Simão encontra a inspiração, às vezes na forma de “piada pronta”, expressão que ele celebrizou.
O recurso usado para criar o efeito cômico nesse caso é o simples deslocamento da informação para a sua coluna. A graça depende muito da atualidade, daí o casamento perfeito entre o humor do colunista e as páginas do jornal.
É Freud quem explica que o poder de síntese é um dos fatores responsáveis pelo prazer que temos de ler ou ouvir um chiste. Simão resume assim a derrota de Trump nas últimas eleições dos EUA: “Cabô a Casa da Supremacia Branca!”. É dito em uma frase o que poderia ser desenvolvido em um texto inteiro de caráter argumentativo, com a vantagem adicional de nos conceder o prazer do reconhecimento de algo que sempre esteve diante dos nossos olhos e não foi percebido antes.
Das suas criações, a mais popular é, sem dúvida, o “picolé de chuchu”. A junção do gelado com o insípido, numa imagem quase infantil, sintetizou, à maneira de uma caricatura, o traço característico do ex-governador Geraldo Alckmin. E diga-se: “chuchu” já vem sendo usado nesse sentido em relação a quaisquer personagens que se assemelhem ao que lhe serviu de inspiração, ao mesmo tempo que seu sentido antigo de “moça bonita” vai sendo esquecido e, ao lado do “pão” e da “lasanha”, ficando na memória dos mais antigos.
O pai da psicanálise, que muito se interessou pelo estudo dos chistes, explica que os bons são aqueles que levam à explosão do riso. Para ele, o poder de síntese e a suspensão do juízo crítico instaurada pelo chiste produzem prazer, e esse prazer pode ser mais efetivo na transmissão de uma mensagem do que o poder de argumentação.
Não por outro motivo os trocadilhos e quaisquer jogos de linguagem são tão usados para capturar a nossa atenção, seja na linguagem publicitária, seja nos textos de humor ou nos quadrinhos, seja, cada vez mais, no próprio jornalismo.