O suarabácti de Lula

A última fala do ex-presidente Lula gerou uma avalanche de comentários nas redes sociais – e, como sempre acontece, houve quem se preocupasse em avaliar o seu uso do português. Desta vez, foi a pronúncia da palavra “advogado” como “adevogado” o que chamou a atenção.

Vale dizer que o acréscimo de um apoio vocálico a desfazer um grupo consonantal é um fenômeno fonético relativamente comum, chamado “suarabácti” – a palavra estranha vem do sânscrito.

O nome do inseto em que se teria transformado a personagem Gregor Samsa do conto de Franz Kafka (“A Metamorfose”) é um exemplo desse processo. “Barata” vem do latim “blatta” (houve rotacismo na passagem de “l” a “r” e o acréscimo da vogal, que transformou “bra” em “bara”).

Essa formação, por ser antiga, talvez não nos impressione muito, tampouco gere percepção de erro. Veja-se, então, o que se deu com as palavras “cáften” e seu feminino, “caftina” – por via popular, fixaram-se as variantes “cafetão” (com epêntese, que é o acréscimo de fonema por acomodação articulatória ou mesmo por analogia – possível semelhança com “café”) e “cafetina”. O mesmo vale para o verbo “caftinar”, que, na variante popular, é “cafetinar”. O uso garantiu às variantes populares um lugar no dicionário.

Nem sempre, porém, a vogal de apoio se fixa na escrita, como ocorreu com “barata” e com o par “cafetão/ cafetina”, mas é comum que se fixe na pronúncia. Aos que se incomodaram com o “adevogado” de Lula, sugiro que observem à sua volta (e mesmo nos noticiários de TV) a pronúncia de termos como “psicólogo”, “psiquiatra”, “psicologia”, em que frequentemente aparece um “i” depois do “p” (como se lessem “piscicólogo”, “pissiquiatra”, “piscicologia”).

Atire a primeira pedra quem nunca tenha dito “peneumonia” em vez de “pneumonia” ou “peneu” (do automóvel) em vez “pneu”. Mais: será que você pronuncia “sub-humano” (“su-bu-ma-no”) ou deixa aparecer sorrateiramente uma vogal “i” depois do “b” (“subi-humano”)?

Quem ficou indignado com o suarabácti do Lula que se cuide ao pronunciar as formas do verbo “indignar-se”. Muita gente supostamente bem letrada tropeça ao pronunciar o imperativo “indigne-se” e prefere lançar mão do apoio vocálico, dizendo algo como “indiguine-se”. Já ouviu isso? Que dizer de palavras em que o “x” tem som de “cs”? Há quem diga “séquiço” (sexo) ou “fáquis” (fax), coisa muito comum.

Na pronúncia de certos estrangeirismos, fica ainda mais evidente a nossa tendência a criar apoios vocálicos e outras acomodações articulatórias. “Smartphone” soa “ismartifone”, “e-mail” soa “emeio” e por aí vai.

O próprio Lula, em sua fala, lembrou que, no passado, ele dizia “menas laranja” e que era alvo de correção (embora não houvesse redes sociais, a mídia não deixava passar), mas que, na porta da fábrica, todo o mundo entendia – e é verdade.

A flexão de “menos” (como “menas”) enquadra-se no fenômeno da hipercorreção (ou ultracorreção), em que o falante interpreta como errado o que está certo, em geral por insegurança em relação ao uso culto da língua. É esse o caso também de quem flexiona indevidamente as formas do verbo “haver” em construções do tipo “Haviam muitas pessoas” ou “Houveram muitas denúncias”, nas quais a norma culta orienta a manter o verbo invariável (“Havia muitas pessoas”; “Houve muitas denúncias”).

É por essas e por outras que a linguística evita trabalhar com conceitos de “certo” e “errado”, que são muito relativos e, num esforço de simplificação, deixam de considerar a diversidade de registros, que, juntos, compõem a língua.