Títulos ambíguos e títulos enigmáticos
Um dos problemas típicos de textos jornalísticos, embora não só deles, é o uso de construções sintáticas ambíguas. Por que será que isso acontece?
Por um lado, é sempre um desafio criar um título sintético e chamativo que caiba no espaço destinado a ele. Caber é um dado importante e, às vezes, definidor de uma escolha. Essa é uma imposição da diagramação, que, não raro, põe o redator em palpos de aranha; a dificuldade, embora atenuada na versão online, nunca está de todo afastada. É por essas e também por outras que as ambiguidades nem sempre são percebidas no momento em que são produzidas.
Por outro lado, há estruturas da língua que predispõem ao risco da ambiguidade. É esse o caso dos pronomes possessivos de terceira pessoa (seu, sua, seus suas). Para ilustrar o problema, vale observar um título publicado na edição impressa do último dia 28 de abril (página B12):
O pronome possessivo “sua”, associado ao substantivo “obra”, pode remeter o leitor tanto ao biógrafo, como se desejava, como ao escritor Philip Roth. Vale notar que, como se está falando do biógrafo, em tese, é a ele que se refere o pronome, mas o contexto permite a segunda leitura.
Os pronomes possessivos de terceira pessoa, de fato, oferecem esse risco, daí a preferência de certos órgãos da imprensa pelas formas “deles” e “delas”. É disso, aliás, que fala Caetano Veloso quando, em sua canção “Língua”, nos sugere que “ouçamos com atenção os deles e os delas da TV Globo”.
O título acima, no entanto, nada ganharia com a substituição de “sua obra” por “obra dele”, como se pode perceber, motivo pelo qual nunca fiz coro com recomendações generalizantes e abstratas do tipo “nunca use x”, “substitua x por y”. Convém considerar que o termo “obra”, aqui usado em referência a um livro (a biografia de Roth), é, por excelência, o termo empregado para tratar do conjunto da produção de um artista, sobretudo quando este já morreu. Certamente, essa escolha lexical contribui para a ambiguidade.
Mais um fator favorece a leitura indevida do título acima: o verbo “mudar”. Poderíamos imaginar que a circunstância em questão “muda” a leitura de quem conhece a obra de Roth. Lemos a obra de um modo e agora, à luz das revelações, nós a leremos de outro. Tal interpretação é reforçada pelo fato de ainda não termos tido acesso ao livro do biógrafo – se não o lemos, como a denúncia “mudaria” nossa leitura?
Alguns poderiam argumentar que, obviamente, a vida do biógrafo não influi na interpretação da obra do biografado. A esses recomendo reler com atenção o subtítulo (entre os jornalistas chamado de “linha fina”), em que se informa que as denúncias contra o biógrafo podem respingar no biografado, o que será explicado no decorrer do texto.
Vemos, portanto, que o título continha um problema. O fato de, em alguma medida, serem possíveis as duas interpretações (as denúncias mudam a leitura da biografia ou mudam a leitura da obra de Roth) só piora a situação, pois, se a intenção fosse dizer as duas coisas, isso deveria ser feito com clareza.
Diante da situação, tomou-se a decisão de reformular o título na versão online. Sendo sua parte (mais) problemática o trecho “sua obra”, optou-se pelo seguinte:
Saber se biógrafo de Philip Roth estuprou alguém muda a leitura
De ambíguo o título passou à categoria de enigmático, pois agora simplesmente não se sabe de que leitura se está falando: leitura de quê? O substantivo “leitura”, nesse caso, pede um complemento. O termo prescinde de complemento quando tomado em sentido geral, ou seja, como uma prática (O estímulo à leitura é muito importante nos anos iniciais da escola).
Não nos passa despercebida outra mudança nesse título: substituiu-se, em boa hora, o substantivo “estuprador” por “estuprou alguém”. Esse ponto é mais delicado, pois o referido biógrafo, Blake Bailey, foi acusado, mas ainda não foi julgado, o que nos aconselha a não tachá-lo de “estuprador” – por mais que ele nos pareça merecdor da alcunha. Proponho aqui duas alternativas ao título original e também à sua segunda versão, sabendo, de antemão, que nossos leitores poderão ter ideias melhores:
Biografia de Philip Roth é posta em questão depois de acusação de estupro contra seu autor
Biografia de Philip Roth terá leitura influenciada por acusação de estupro contra seu autor
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