Notícia ou obituário?

Quem lê a Folha regularmente já deve ter percebido que as notícias de morte nunca trazem o verbo “falecer”. Existe uma preocupação de natureza jornalística com a objetividade do registro do fato. Assim, os títulos sempre são variações da expressão “Morre fulano”, seguida de um aposto, no qual é destacada uma informação relevante sobre a pessoa.

Alguns casos recentes ilustram essa espécie de regra:

Morre Alber Elbaz, ícone de Hollywood e estilista da Lanvin, aos 59 anos, de Covid

Morre Michael Collins, astronauta da Apollo 11, aos 90 anos

Morre o político Levy Fidelix, 69, conhecido como o pai do aerotrem

Morre Tempest Storm, atriz burlesca que namorou John F. Kennedy e Elvis

Morre o economista John Williamson, pai do Consenso de Washington

Como se pode perceber, é na escolha do aposto que o autor do texto pode deixar transparecer algum juízo de valor (“ícone de Hollywood” é bastante simpático, digamos assim; “astronauta da Apollo 11” é neutro).

Muito bem. A morte do ator Paulo Gustavo, que provocou grande comoção nas redes sociais, foi noticiada sob o título “Morre Paulo Gustavo, o maior chamariz de público da história do cinema do país”. Não foram poucos os leitores que se incomodaram com o aposto, considerado indelicado em face do momento de consternação. As críticas foram ouvidas e optou-se por substituir “chamariz de público” por “fenômeno de público”.

Foi, por certo, o termo “chamariz” que fez soar pejorativa a caracterização do ator – talvez por dar a entender que o público de alguma forma possa ter sido “enganado” (como o peixe que morde uma isca) e levado a ver produções cinematográficas de baixo valor estético. Se tiver sido essa a ideia, a crítica recai mais sobre os filmes como um todo do que sobre o ator, que, afinal, por suas qualidades, era capaz de atrair o público.

No texto, o jornalista fez um apanhado da carreira do ator, enfatizando bastante os altos números de bilheteria, o que costuma soar como elogio – afinal, se é popular, é bom (discussão que pode ficar para outro momento). O que me parece oportuno aqui é traçar uma distinção entre notícia da morte e obituário, se é que é clara essa distinção (o leitor está convidado a opinar).

A Folha tem uma seção de obituário, em que se faz um tipo específico de relato da vida de uma pessoa morta recentemente (qualquer pessoa pode ser retratada nessa seção). As informações são colhidas em conversas com parentes e amigos, que descrevem com carinho a personagem em questão, buscando sempre os melhores traços da sua personalidade, fatos engraçados, hábitos, coisas de que gostava, frases que costumava dizer, enfim, as lembranças mais alegres. O arranjo das informações, quando bem-feito, resulta num interessante perfil do falecido, sempre marcado pela delicadeza, à maneira de uma crônica. Ler um obituário é mais ou menos como folhear o álbum de fotos de família da pessoa.

A notícia da morte, penso cá com meus botões, é outra coisa. É um texto objetivo, que não se confunde com um obituário propriamente dito. Nesse sentido, o jornalista pode transmtir com distanciamento as informações que fazem da pessoa assunto de notícia. O que, no entanto, talvez seja preciso considerar é o momento por que passamos, a morte prematura por Covid-19 de uma pessoa que, de alguma forma, representa as mais de 400 mil que se foram desde o início da pandemia no Brasil. Isso explica a sensibilidade dos leitores, que, nesta hora, veem Paulo Gustavo mais como um amigo querido que se vai do que como um artista que deva ser lembrado pelo valor de sua obra.