Meu neologismo favorito
Uma palavra nova, inventada, começa a circular na língua aqui e ali e, depois de uma espécie de fase de testes, é incorporada ao léxico ou descartada, condenada ao esquecimento, quando não ao uso particular de um falante ou de um grupo. Em geral, é a inclusão em dicionários que atesta a entrada do neologismo no léxico da língua, uma forma de reconhecimento de sua vitalidade.
Nossos leitores aceitaram uma provocação para interagir com a Folha, que os convidava a dizer qual era o seu neologismo predileto. Como não poderia deixar de ser, não faltou quem se lembrasse do repertório novo surgido com a pandemia de Covid-19, que, por um deles foi chamado de covidioma.
Lá estão arrolados covidário (já usado por médicos para fazer referência à ala de pacientes de Covid-19) e as invenções covidar (pegar a doença/ Fulano covidou), descoronar (desinfetar com sentido específico de livrar do coronavírus/ Fulano descoronou as compras), clorokiller e cloroquiner – estes últimos, mesclas das sílabas iniciais de “cloroquina” com elementos da língua inglesa, têm uso ligado especificamente ao contexto brasileiro de enfrentamento da pandemia pelo governo e, por certo, dispensam explicação.
Covidário a alguns incomoda pela associação com os antigos “leprosários”, que eram estabelecimentos onde permaneciam isolados os pacientes de lepra (hoje hanseníase) quando a doença não tinha cura. O sufixo “-ário”, nesse caso, apenas indica a ideia de coleção, como, de resto, em apiário, serpentário, ranário etc. O exemplo é bom porque mostra um dos processos de criação de palavras: o uso de sufixos preexistentes na língua associados a novos radicais.
Em covidioma, temos um caso de composição, com dois radicais justapostos (Covid + idioma), outro processo bastante fecundo de criação. As formas verbais, é bom que se diga, sempre pertencem à primeira conjugação (terminada em “-ar”), que é a única fértil no momento atual da língua, aparecendo também no sufixo “-izar”. Assim se explicam covidar, descoronar e outros verbos que surgiram na enquete.
Verbos: sempre da primeira conjugação
Uma leitora nos diz que, no lugar da expressão “fazer xixi”, da linguagem infantil, ela emprega xixizar. Outro de nossos amigos gosta mesmo é de pitacar, coisa que ele diz fazer diariamente no site da Folha: ele dá seus “pitacos” e passa o seu recado! “Pitaco”, como todos sabemos, é aquele palpite que se dá numa conversa. No dicionário “Houaiss”, embora com ressalva, aventa-se a hipótese de que esse termo de uso informal tenha origem no nome de Pítaco, um antigo sábio da Grécia!
Entre os verbos, apareceram mariar (agir como Maria?) e baleiar, usado por um grupo de frequentadores da Barra do Sahy, no litoral norte de São Paulo, que costumava caminhar pelo areal até a vizinha praia da Baleia, momento de descontração e de conversas sobre vários assuntos. O termo funciona dentro de um grupo fechado, sendo, portanto, menos um neologismo propriamente dito que uma gíria. Segundo a leitora que o enviou, o verbo guarda sinonímia com a expressão fazer uma Baleia.
Formação erudita
Fazendo uso de elementos gregos de composição (“poli-” + “agn-”), um leitor nos disse usar o termo poliagno para se referir a uma pessoa multi-ignorante. É ele quem explica: “É o contrário de ‘polímata’, que é o indivíduo que sabe de vários assuntos. O ‘poliagno’ desconhece vários assuntos”. “Poli-” indica multiplicidade, e “agn-”, ignorância.
Sabor popular
Mais frequentes que os termos de feição erudita, chegaram a nós aqueles de sabor popular. É o caso de enjolanca, que o leitor diz ouvir do pai “e de mais ninguém” (um modo de dizer que algo é “muito enjoado”) e devolança, que seria a “volta”, a “resposta” (é do leitor o exemplo de uso: “Bolsonaro não comprou as vacinas e agora nas urnas virá a devolança”).
Composições criativas
A política tem dado grande estímulo à criatividade das pessoas. Têm surgido várias palavras expressivas, algumas muito bem-humoradas, caso de embaixapeiro, que já veio no formato de verbete de dicionário, com definição e tudo (“palavra que designa o sujeito que supõe ter aptidão para ocupar um cargo diplomático por ter já desempenhado a função de fritador de hambúrguer”), e de intelijumento (“o mais esperto entre os menos espertos”), ambas de um mesmo autor.
Uso particular
Comprofodência também chega à maneira de verbete: “Substantivo abstrato feminino. Sinônimo de ‘simancol’, bons modos, temperança. Adjetivo: comprofodente. Uso: Fulano tem uma postura bastante comprofodente”. Provavelmente de uso particular, o termo parece nascer da junção de vários outros. Formação similar dá-se em menosquência, que, segundo o autor, sugere capacidade de discernimento (“Isso é falta de menosquência; que absurdo, que lapso de menosquência!”).
Gíria
Uma leitora diz gostar muito da gíria tals, que é uma espécie de plural irregular do pronome demonstrativo “tal”, com valor de “etc.”: “Estou mergulhada naquele projeto, numa revisão difícil, e-mails por responder e tals”. A graça, naturalmente, está nesse plural com mero acréscimo de “s” ao “l” final. É a desobediência à regra de flexão que assinala o uso gírio.
Efeito semelhante vem de taqueopariu, enviado por outra pessoa: a criatividade vem da junção dos termos e da supressão da sílaba inicial de “puta”, cujo traço semântico se apagou, restando ao termo apenas o valor interjetivo.
Panguar também apareceu no rol de preferências dos leitores: o termo da linguagem popular (“ficar/estar de bobeira”, à toa, perdendo tempo, enganado, iludido) já aparece no “Dicionário Informal” na expressão “tá panguando”, de origem desconhecida.
Referências intelectuais
Alguns leitores trouxeram palavras inspiradas em leituras e outras referências. Foi esse o caso de gogolização, termo derivado do nome do escritor russo Nikolai Gogol, autor da célebre obra “O Inspetor-Geral”, na qual um impostor se passa pelo inspetor-geral de uma província russa e procede às mais ridículas situações. Nosso leitor diz usar o termo “para qualificar o total desmantelamento da ética, da seriedade e da qualidade dos cargos de confiança do governo”.
Acabativa foi lembrado por outro leitor, que atribui sua criação ao consultor de empresas Stephen Kanitz, em clara analogia com “iniciativa”. Segundo o conferencista, não basta ter iniciativa; é preciso terminar os projetos iniciados. Esse termo ilustra outro processo de formação do neologismo, que é a analogia.
O termo quimiscritor, já inventado e associado a Primo Levi, químico e escritor, foi lembrado por outro leitor. Outro ainda se recordou do neologismo criado pelo ensaísta libanês (radicado nos Estados Unidos) Nassin Nicholas Taieb, que cunhou a forma antifragile – em português, antifrágil – que nomeia um conceito filosófico. Novos conceitos, novos objetos, novas realidades precisam de novos nomes. Esse é, por assim dizer, o caso típico de surgimento de neologismo.
Referências literárias: à moda de Guimarães Rosa
O maior criador de palavras da literatura brasileira foi, sem dúvida, João Guimarães Rosa, autor de “Grande Sertão: Veredas”, entre muitos outros livros bem conhecidos do público. Vários leitores se lembraram do escritor, tendo um deles escolhido desexistir, que aparece na sua obra máxima: “Dia da gente desexistir é um certo decreto – por isso que ainda hoje o senhor aqui me vê” ).
Outros trouxeram termos que, como se vê, até poderiam ter saído de uma página de algum de seus escritos: desver (hoje usado nas redes sociais, quando queremos esquecer uma imagem inconveniente), desendoidar (busca de atividades na tentativa de não enlouquecer neste período de pandemia), desbolsonarizar (“Em 2022, será mais que necessário ‘desbolsonarizar’ o Brasil), disconcordar, desler (o último já usado por Paulo Leminski, no poema “Ler pelo Não” – “Desler, tresler, contraler,/ enlear-se nos ritmos da matéria,/” – e pelo psicanalista Ricardo Goldenberg, na obra “Desler Lacan”), repiorar e desasnificar. Este último veio de leitora que diz tê-lo criado em associação à imagem do Burro Falante (personagem de Monteiro Lobato), com o sentido de “buscar instrução para afastar o rótulo de burrice, inteirar-se de determinados assuntos para não passar vexame entre amigos”. Vale dizer que os dicionários registram o termo “desasnar”, no sentido de dar instrução (especialmente as primeiras noções), instruir-se, adquirir conhecimentos básicos de um oficio, ou corrigir equívoco.
O verbo “descomer” também apareceu, como referência a Ariano Suassuna, que o emprega no “Auto da Compadecida”, mas, segundo o dicionário “Houaiss”, esse termo, de uso informal, tem registro desde 1882, não sendo, portanto, um neologismo. O mesmo ocorre com “esperançar”, palavra que nos chegou como criação do saudoso educador Paulo Freire, que, de fato, o empregou, mas não foi seu autor (o registro mais antigo do termo é de 1789).
Neologismos dicionarizados
Outros leitores resgataram neologismos que, embora tenham perdido o frescor da estreia, ainda são percebidos como tais. É esse o caso do adjetivo imexível, criado por Antônio Rogério Magri, ministro do Trabalho do governo Collor de Mello (1990). O uso do termo (no sentido de o governo “não pretender ‘mexer’ nas regras da caderneta de poupança”) foi objeto de grande polêmica na imprensa até ganhar a defesa do filólogo Antônio Houaiss, que o registrou em seu dicionário.
Outro termo que já se tornou familiar é o popular panelaço, lembrado por uma leitora, que o escolheu por gostar “tanto do som da palavra como do efeito”. Cabe lembrar que o sufixo “-aço”, normalmente associado a aumentativo (amigaço, mulheraço), aparece nesse caso ligado à ideia de quantidade, análogo a “buzinaço”.
Ressignificado
Houve um leitor que disse ter predileção pela palavra textículo, que acredita ser de sua própria lavra. O termo é comum na linguagem informal como diminutivo de “texto”, em possível analogia jocosa com “testículo”. Nosso leitor, no entanto, adverte de que o significado do termo é, para ele, “texto pequeno e ridículo”. Sua analogia particular dá-se, portanto, com “ridículo”. A ressignificação de um termo preexistente também é um processo neológico.
Tabuísmo e ativismo
Recebemos ainda “estelarmente”, que não é um neologismo, mas um advérbio derivado do adjetivo “estelar” (relativo a “estrela”), rebosteio, da linguagem popular tabuística, e, ainda, todxs, cujo uso foi defendido como forma de respeitar as pessoas que não se identificam com nenhum dos gêneros – e, talvez sem perceber, em sua justificativa, a pessoa que o enviou faz uso de um dos neologismos mais frequentes nas redes sociais: “E pedir que compreendam quem usa não é ‘mi-mi-mi’, é garantir a liberdade de expressão, liberdade sexual e liberdade que um ser tem sobre si”. “Mi-mi-mi”, cuja grafia deve ser com os hifens, ilustra outro processo de criação de palavras, a onomatopeia, ou seja, a imitação de um som. É uma modernização do proverbial “nhe-nhe-nhem”, formado pelo mesmo processo.
Candidato à dicionarização
Finalmente, citado por mais de um leitor, o vocábulo bolsomínion é um candidato à dicionarização, dada a frequência do uso e o significado razoavelmente bem definido. Formado das primeiras sílabas do sobrenome do presidente da República (Bolsonaro), seguidas da palavra “minion”, do inglês, que significa “lacaio”, “seguidor servil”, o termo está na boca do povo. Note que o uso do acento fica aqui como sugestão de aportuguesamento da palavra, que, de resto, é uma paroxítona terminada em “n”.
PS- Agradecemos a todas as pessoas que participaram da interação com a Folha.