Olimpíada ou Olimpíadas?

Sim, a Folha mudou uma padronização adotada há muitos anos: a atual edição dos Jogos Olímpicos passa a ser chamada de Olimpíadas de Tóquio, no plural, em vez de Olimpíada de Tóquio.

Mudanças repentinas costumam dividir opiniões e, com o tempo, as coisas se acomodam. Até a semana passada, o “Manual da Redação” instruía as equipes do jornal a usar o singular, afinal “era o certo”, e agora o novo entendimento passa a prevalecer. Naturalmente, muitos jornalistas, antes convencidos de que “faziam o certo”, estão estranhando a novidade.

Ao que tudo indica, o incômodo aumenta quando se revela o motivo da mudança: uma suposta concessão à audiência. A interpretação técnica, por assim dizer, é que, como o termo no plural é mais frequente nos buscadores do que o termo no singular, ao usar o plural nas reportagens, estas aparecerão mais vezes nos resultados de busca, o que pode aumentar a audiência da Folha.

A questão gramatical em si (singular ou plural) é quase tão bizantina quanto o sexo dos anjos. Como diria Guimarães Rosa, “pão ou pães, é questão de opiniães”.

O fato concreto é que “olimpíada”, pelo menos na origem, é o termo que designa cada um dos intervalos de quatro anos entre duas celebrações consecutivas dos Jogos Olímpicos, pelos quais o tempo era contado na Grécia antiga. Rigorosamente, portanto, nem o singular nem o plural estariam corretos. A propósito, uma visita a alguns jornais e sites gregos mostra que, entre os criadores das competições da cidade de Olímpia, o evento é chamado apenas de Jogos Olímpicos.

Entre nós, gostemos ou não, os dicionários registram (e não é de hoje) a forma “olimpíadas” como sinônimo de Jogos Olímpicos. No “Houaiss”, a segunda acepção do termo “olimpíada”, que traz o significado que o uso consagrou entre nós, vem seguida da observação de que, nesse sentido, a palavra é mais usada no plural. O dicionário “Aulete”, este sim, registrou um verbete novo, cuja entrada já vem no plural, “olimpíadas”, seguida da seguinte definição: “competições esportivas entre países que, a partir de 1896, se realizam em uma cidade predeterminada, de quatro em quatro anos”.

O que traz questionamento, na verdade, é menos a gramática que o motivo da mudança de padronização. Afinal, estaríamos deixando de “fazer o certo” para seguir a maioria? O “certo”, porém, é algo bem mais  frágil do que se possa imaginar à primeira vista e, no momento atual, é particularmente instável.

Nos Jogos Paraolímpicos de 2012, fomos surpreendidos com a supressão do “o” do radical de “olímpíada” pelos organizadores do evento, que, para imitarem o inglês “paralympiad”, cunharam a forma “paralimpíada” e , de quebra,  de “paralympic” fizeram “paralímpico”. As grafias, apesar das ressalvas, já entraram nos dicionários.

“Houaiss” fornece a seguinte nota explicativa no verbete “paralimpíada”: “malformação vocabular que Portugal e o Brasil passaram a usar (no Brasil, oficialmente a partir de 25 de agosto de 2012), a pedido do Comitê Paralímpico Internacional para seguir o inglês ‘paralympiad’ (paraplegic + olympiad); o segundo ‘a’ do prefixo ‘par(a)-’ poderia cair no português, nunca o ‘o’ inicial do segundo elemento do vocábulo”.

Na ocasião, a Folha decidiu adotar a novidade apenas nos nomes oficiais dos comitês (brasileiro e internacional), mantendo a integridade da palavra nas demais aparições. A reação das pessoas às novas grafias, aferida pelos comentários em redes sociais, não foi de reprovação da imitação desajeitada do inglês; muito pelo contrário, o comentário geral era que o termo assumia o caráter de marca comercial e, dessa forma, poderia ser alterado pelos patrocinadores do evento, segundo sua conveniência (!).

Nada comparável às reações ao Acordo Ortográfico (1990), que visava à unificação da grafia da língua nos países da lusofonia. A grita foi enorme e durou um bom tempo. Excetuando a oposição de natureza política, choveram críticas ao difícil trabalho a que se entregaram as equipes de lexicógrafos.  No Brasil, o Estado do Acre não admitiu usar a forma corrigida do gentílico local, preferindo manter a condição de exceção à regra. A forma “acriano”, com “i”, proposta pelo Acordo, foi rechaçada em nome da manutenção da antiga grafia, “acreano”, com “e”, de resto oficializada nos documentos por meio da lei nº 3.148, de 27 de julho de 2016.

Enfim, muita energia se gastou na crítica ao Acordo Ortográfico, que suprimiu o trema de “linguiça” e o acento de “geleia”, mas a reação ao monstrengo “paralimpíada” foi tímida, se não inexistente. Como estamos muito acostumados a estender o tapete vermelho para qualquer termo do inglês que nos bata à porta, por que não adaptar uma palavra do português ao figurino de uma língua mais valorizada?

É por essas e por outras, dito de forma muito simplificada, que quem manda mesmo na língua é o povo.  É o conjunto dos falantes da língua que, na prática comunicativa necessária à vida, testa, experimenta, aprova ou desaprova o que quer que seja. Seus critérios são os mais variados e, por certo, refletem as características da sociedade e do tempo.

Antes da internet, os termos demoravam muito mais para conseguir um registro em dicionário. Tinham de passar da língua oral para a escrita (aparecer em jornais, em obras literárias ou em outros documentos) e a insistência no uso lhes dava o passaporte para ingressar no vocabulário da língua.

Hoje, o uso é aferido pelas ferramentas dos buscadores e, além disso, os próprios dicionários estão em plataformas online, que permitem maior velocidade de atualização. O leitor que não conheceu a era pré-internet pode achar estranho, mas uma nova edição de um dicionário levava anos para ser feita, pois o acréscimo de meia dúzia de palavras não justificava tornar a anterior obsoleta.

Tratar a nova escolha do jornal como uma “concessão à audiência”, comparável a truques sensacionalistas para conseguir “cliques”, talvez não seja a melhor forma de encaminhar a questão, pois a língua, de fato, constrói-se, dia após dia, pela coletividade.